quinta-feira, 16 de maio de 2013

. É ciência?

. A evolução da ciência segundo Karl Popper e Thomas Kuhn


Paralelamente à questão do método científico e do critério de cientificidade coloca-se a questão da evolução da ciência, isto é, a determinação das condições em que uma teoria científica é substituída por outra. Dito de outro modo: em que circunstâncias e por que razão são os modelos explicativos da realidade substituídos por outros considerados mais adequados? A astronomia de Ptolomeu, por exemplo, um modelo geocêntrico, foi substituída pela de Copérnico, um modelo heliocêntrico que contraria a perceção sensorial. Mas como se procedeu a essa mudança? E a teoria de Darwin, para dar outro exemplo, segundo a qual todas as espécies evoluiram por seleção natural a partir de um ascendente comum, quando e em que circunstâncias se impôs face às ideias que defendiam que os seres foram criados separadamente? Esta foi uma questão que ocupou Karl Popper, que já conheces, da mesma forma que ocupou Thomas Kunh, um filósofo da ciência cujas ideias estudaremos de seguida.
Em relação a Karl Popper, de acordo com o seu falsificacionismo, a ciência é objetiva e a sua evolução é racional. Isto é, o método da ciência baseia-se em conjeturas e refutações. Os cientistas partem de problemas, propõem teorias para os resolver e submetem-nas a testes empíricos que visam refutá-las. Se as teorias resistirem aos testes, continuam em vigor, isto é, continuam a ser aceites como hipóteses provavelmente verdadeiras, até que sejam refutadas. A refutação das teorias pode ser total ou parcial, foi o que aconteceu com a física de Newton, durante muito tempo bem sucedida, mas finalmente contestada em alguns dos seus aspetos centrais. Isto quer dizer que segundo Popper nunca poderemos saber se uma teoria é literalmente verdadeira, a única coisa que podemos dizer é que até determinada altura não conseguimos falsificá-la. Em termos gerais, Popper concebe a evolução da ciência como Darwin concebe a das espécies: as teorias menos aptas, isto é, as que não resistem aos testes empíricos, vão sendo eliminadas. Trata-se, portanto de um processo seletivo segundo o qual vamos descobrindo e eliminando os erros das teorias aceites numa determinada época. Algo que só será possível se adotarmos uma atitude crítica em relação às teorias científicas, de modo a não as encararmos como dogmas e nos aproximarmos progressivamente da verdade. Em relação à verdade, Popper também é muito claro. Uma teoria é verdadeira se e somente se corresponde aos factos, isto é, se descreve bem aquilo que efetivamente se passa no mundo. Numa palavra, se é objetiva. Uma meta de certo modo inalcançável. Em primeiro lugar, porque nunca poderemos confirmar definitamente as teorias, apenas podemos refutá-las. Depois, e talvez mais importante, porque cada teoria bem sucedida, ainda que resolva os problemas de que partiu, dá sempre origem a novos problemas. Daí que Popper prefira falar em graus de verosimilhança, uma vez que nunca teoria nenhuma será totalmente verdadeira, mas apenas mais próxima da verdade do que aquela que vem substituir.
Thomas Kuhn, por sua vez, insatisfeito quer com o indutivismo quer com o falsificacionismo, volta-se para o estudo da história da ciência. A noção de "paradigma" é o conceito central da sua proposta em relação à questão da racionalidade científica e da sua evolução. Um paradigma surge quando um cientista propõe uma teoria de tal modo poderosa que todos os investigadores da mesma área se colocam de acordo. Foi o que aconteceu com a Física de Aristóteles, com o Almageste de Ptolomeu e os Princípios e a Ótica de Newton, entre outros, porque solucionaram problemas que dividiam a comunidade científica ao mesmo tempo que desenvolveram um modelo de investigação a partir do qual todos os outros se posicionaram. Quando este acordo não existe, isto é, quando os investigadores de uma mesma área não estão de acordo em relação a uma teoria que sirva de base comum de investigação, tal como acontece na Sociologia, por exemplo, diz-se que os investigadores permanecem num estado de pré-ciência. Resumindo, um paradigma define e regula todo o trabalho científico numa determinada área de investigação e inclui os seguintes elementos: 
1. Leis e pressupostos teóricos fundamentais;
2. Regras para aplicar as leis à realidade;
3. Regras para usar instrumentos científicos;
4. Princípios metafísicos e filosóficos;
5. Regras metodológicas gerais.
Depois da instituição de um paradigma, inicia-se um período de ciência normal. Isto é, os cientistas trabalham à luz do paradigma aceite, sem o questionar, apenas preocupados em aprofundá-lo. Dito de outro modo, durante o período de ciência normal os cientistas, de acordo uns com os outros, não estão preocupados com grandes problemas nem questionam os pressupostos teóricos, como acontece no período da pré-ciência,  apenas se debruçam sobre problemas e enigmas específicos à luz do paradigma vigente, de modo a consolidá-lo. Quando não conseguem resolver um desses enigmas, mas que supostamente deveriam resolver, surge uma anomalia: enigma, teórico ou experimental, que não encontra solução à luz do paradigma vigente. Se a anomalia persistir, isto é, se ameaçar os fundamentos do paradigma, sobretudo se as anomalias começarem a acumular-se, gera-se uma crise: um período de insegurança evidente durante o qual a confiança num paradigma é abalada. É então que as anomalias começam a ser discutidas pela comunidade científica, instaurando-se um período de ciência extraordinária, indispensável ao surgimento de uma revolução: os fundamentos do paradigma são questionados, às vezes sem rumo, até que surge um novo paradigma rival. A substituição de paradigma, porém, é lenta, muito por culpa da resistência de alguns cientistas que persistem em negar a evidência de algumas anomalias, além de que depende do surgimento de uma nova teoria proposta por um cientista profundamente envolvido na crise. Daí que uma revolução científica corresponda à aceitação, pela comunidade científica, de um novo paradigma, absolutamente diferente e incompatível com o anterior. Quando a incompatibilidade é radical, a ponto de nos parecer que cientistas adeptos de paradigmas diferentes vêem mundos diferentes, os paradigmas revelam-se incomensuráveis, isto é, torna-se impossível compará-los objetivamente de maneira a concluir qual deles é o melhor. Como exemplo da incomensurabilidade dos paradigmas, entre outros, temos a química anterior a Lavoisier, segundo a qual existe na natureza uma substância chamada "flogisto" que explicaria a combustão, e a de Lavoisier, cujo paradigma exclui esse elemento. 

domingo, 12 de maio de 2013

. A conceção popperiana do método científico e o critério da falsificabilidade


Karl Popper é o maior crítico do método indutivo. Este filósofo entende que o método científico não tem origem na observação. A observação é importante, sem dúvida, mas deverá sempre ser precedida pela formulação de um problema que a orienta. Ou seja, num primeiro momento o cientista constata um problema - identificação de uma situação desconhecida ou contrária às teorias existentes - e formula uma hipótese. Formulada a hipótese, o cientista deduz as consequências que daí deverão resultar, para que num último momento possa constatar, ou não, as consequências deduzidas. Trata-se, portanto, de um método hipotético-dedutivo, em que a hipótese funciona como antecedente e a verificação das  consequências como consequente: se h então c. Se a hipótese for verdadeira então deverá ocorrer determinada consequência.
No que diz respeito ao teste a que a hipótese é submetida, a única inferência válida é o modus tollens, segundo o qual afirmar o consequente não permite afirmar o antecedente, mas negar o consequente implica negar o antecedente. Isto quer dizer, ao contrário daquilo que propunham os defensores do método clássico,  que as hipóteses não podem ser verificadas, apenas podem ser corroboradas ou falsificadas: se o consequente não se verificar, a hipótese é falsificada; se o consequente se verificar a hipótese não é verificada, apenas é corroborada. Popper designa este método por método das conjeturas e refutações. Ou seja, os cientistas formulam hipóteses - conjeturas - que depois vão tentar refutar, para  eliminarem os erros e progressivamente determinarem as condições em que se revelam verdadeiras. Em última análise, isto significa que o critério de cientificidade é a falsificabilidade:
1) Uma teoria é científica somente se for empiricamente falsificável;
2) Uma teroria é empriricamente falsificável se, e somente se, for incompatível com algumas observações possíveis.
Da primeira ideia devemos concluir que aquilo que interessa é a possibilidade de falsificarmos as teorias. Uma ideia estranha à primeira vista, uma vez que todos desejamos teorias verdadeiras. No entanto, Popper não diz que uma teoria tem de ser falsificada, isto é, refutada pela observação, mas falsificável, isto é, temos que determinar em que condições se tornaria falsa.
Da segunda ideia conclui-se que se uma teoria é compatível com todas as observações possíveis, isto é, se nenhuma observação permite refutá-la, então não é falsificável, logo não é científica.
Vejamos algumas proposições falsificáveis:
. "Amanhã vai chover", trata-se de uma proposição falsificável, uma vez que será refutada caso não chova no dia seguinte;
. " O lince ibérico já não existe em Portugal", é igualmente falsificável, basta que se observe um lince ou surjam vestígios da sua presença;
. "O cobre dilata quando é aquecido", também esta é falsificável, logo que se observem pedaços de cobre que não exemplifiquem a lei da dilatação;
Este último exemplo torna óbvio que o critério da falsificabilidade tem vantagens en relação ao da verificabilidade, desde logo porque não exclui as leis da natureza. Estas leis, tal como as proposições universais em geral, não podem ser verificadas, mas podem ser refutadas: a observação de muitos corvos pretos não prova que todos os corvos são pretos, enquanto que a observação de um corvo que não fosse preto bastaria para falsificar a afirmação. 
Vejamos agora algumas proposições não falsificáveis, logo não científicas:
. "Amanhã chove ou não chove";
. "O lince ibérico foi criado pelos deuse da floresta";
. "Há pedaços de cobre que não dilatam".
A primeira é uma verdade lógica básica e não pode ser refutada por nenhuma observação, as coisas são ou não são. As outras poderão ser falsas, embora não tenhamos maneira de provar a sua falsidade.

Objeções ao falsificacionismo
Embora apresente vantagens em relação ao indutivismo, a verdade é que também o falsificacionismo está sujeito a críticas. A primeira prende-se com o facto de Popper propor uma metodologia que está em desacordo com a prática habitual dos cientistas, empenhados em confirmar as suas teorias mesmo quando as previsões empíricas delas deduzidas não ocorrem. Depois, mais importante ainda, falsificar uma teoria não é uma tarefa tão fácil quanto parece. É verdade que para refutar a hipótese "Todos os cisnes são brancos" foi suficiente ter aparecido um que não correspondesse à descrição. No entanto, na ciência nem sempre se testam hipóteses isoladas. Para testar uma teoria é preciso deduzir previsões das várias leis que constituem a teoria, e se uma previsão falha apenas fica provado que uma dessas leis ou condições iniciais é falsa, não a teoria na sua totalidade.


sábado, 11 de maio de 2013

. A conceção indutivista do método científico e o critério positivista da verificabilidade


Tal como afirmávamos na publicação anterior, o objetivo da ciência é formular leis que expliquem os fenómenos a que se dedica. Em relação ao modo como isso acontece, isto é, em relação ao método científico, é comum afirmar-se que tudo começa pela observação desses mesmos fenómenos. Segundo esta perspetiva, também conhecida por método clássico, o trabalho do cientista consistiria em formular proposições universais verdadeiras a partir da observação de casos particulares que exibem relações entre si. Entre uma coisa e outra, isto é, entre a observação dos fenómenos e a elaboração da lei que os explica, está a formulação de uma hipótese - explicação provisória sujeita a confirmação - e a experimentação cuja finalidade é confirmar essa mesma hipótese. Segundo esta conceção, o critério que permite passar da hipótese à lei explicatica é o da verificabilidade, isto é, se a hipótese for verificada/confirmada por um número significativo de casos, conclui-se que ela será verificada em todos os casos pertencentes à mesma espécie. 
O critério da verificabilidade foi proposto pelos filósofos do positivismo lógico, um movimento filosófico radicalmente empirista, também conhecido por círculo de Viena, que influenciou decisivamente a filosofia da ciência durante grande parte da primeira metade do século XX. Segundo este movimento, só podemos considerar científicas as teorias empiricamente observáveis. 
Como já terás percebido, trata-se de um método indutivo, que parte do particular para o geral, tal como nos argumentos indutivos que estudámos e cujas limitações já conheces. A primeira dessas limitações consiste no risco de fazermos uma generalização abusiva, uma vez que é humanamente impossível observar todos os fenómenos a que a lei supostamente se aplica. No caso da lei da gravitação de Newton, por exemplo, seria necessário observar o comportamento de todos os corpos materiais do universo. A segunda limitação tem a ver com a natureza das previsões: uma coisa é antecipar um resultado provável com base na experiência passada, como acontece na hipótese, outra completamente diferente é afirmar que a experiência passada comprova esse resultado, como acontece na lei. Tal como verificámos, por exemplo, a propósito da proposição "Todos os cisnes são brancos", verdadeira até que foram encontrados cisnes pretos na Austrália. Enfim, um método a ter em conta, mas com precauções, como tinha dito David Hume, o grande empirista, ainda no século XVIII, e mais tarde, já no século XX, virá a dizer o grande crítico do positivismo lógico, Karl Popper. Mas de Popper, e das suas propostas, falaremos na publicação que se segue.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

. Conhecimento vulgar e conhecimento científico


O conhecimento vulgar ou senso comum, que no ano passado estudaste a propósito da sua relação com a interrogação filosófica, é o conjunto de conhecimentos básicos que herdamos passivamente e cuja finalidade é quase sempre resolver situações práticas do dia a dia. É, portanto, um conhecimento assistemático e acrítico, isto é, que nos limitamos a registar aleatoriamente e a usar sem o questionar. Dito de outro modo: o senso comum consiste num conjunto de crenças partilhadas pelos seres humanos e cuja justificação depende da experiência quotidiana transmitida ao longo das gerações. É o conhecimento, por exemplo, que nos permite saber que à noite a temperatura diminui ou que existem doenças contagiosas.
A ciência, por sua vez, apresenta-se como um corpo de conhecimentos extremamente sistematizado, organizando o que o senso comum regista de forma dispersa. Organizando e justificando, isto é, buscando explicações para os factos conhecidos. Ou seja, a ciência não só sabe que a temperatura noturna é menor, tal como o senso comum, como sabe por que razão isso acontece. Sabe que há doenças contagiosas e por que razão isso sucede. Se não sabe, busca saber, formulando aquilo a que se chama explicação ou lei científica.
Há quem defenda que entre senso comum e ciência existe continuidade, é o caso de Thomas Huxley, exatamente por aquilo que fica dito: a Ciência explica o que o senso comum regista simplesmente. É essa a teoria mais comum, a da continuidade entre ambos os saberes, uma vez que as diversas ciências correspondem em grande medida das necessidades práticas da vida humana. Por exemplo, a Astronomia veio responder à necessidade de calendários rigorosos, a Geometria à de medir terrenos e construir casas, a Biologia à de preservar a saúde...
No entanto, também há quem pense de forma diferente, quem defenda que entre ambos os saberes se dá uma rutura. Quem defende a tese da rutura fá-lo por duas razões. Em primeiro lugar porque defendem que a ciência deve afastar-se do senso comum, fonte de erro e um por isso obstáculo epistemológico, tal como afirma Bachelard na tradição platónica que distingue radicalmente opinião e conhecimento verdadeiro. Depois porque insistem na ideia de que o trabalho científico é muito específico, quer por estar centrado na objetividade, por oposição à subjetividade do senso comum, quer por seguir um método rigoroso com recurso a técnicas e instrumentos igualmente específicos. Mas sobre esse método falaremos na próxima publicação.

domingo, 17 de março de 2013

. Ética aplicada: o caso da eutanásia


Identificação do problema
Imagina que conheces alguém em grande sofrimento e sem perspectivas de viver uma vida que valha a pena. Será moralmente aceitável ajudá-lo a morrer? No caso de uma pessoa muito velha ou um doente crónico, por exemplo, será moralmente aceitável desligar a máquina de apoio à vida ou administrar uma droga letal? Numa palavra, até que ponto podemos falar de morte misericordiosa? Como mostrarei de seguida, esta é uma questão que sugere respostas distintas consoante a teoria ética que adoptarmos. Antes disso, porém, é necessário estabelecer a distinção entre diferentes tipos de eutanásia:
- falamos em eutanásia voluntária quando o paciente deseja morrer e expressa o seu desejo, trata-se de uma espécie de suicídio assistido já praticado legalmente na Suiça e na Holanda;
- a eutanásia involuntária dá-se quando o paciente não deseja morrer e o seu desejo é ignorado. Em muitos casos equivale a assassínio;
- a eutanásia não voluntária corresponde à situação em que o paciente não está consciente ou em condições de exprimir o seu desejo;

Discussão do problema: a eutanásia voluntária
 Um cristão, cuja ética se baseia na ideia de dever, terá muitas dúvidas em relação à justificação moral da eutanásia voluntária, uma vez que contraria o mandamento “Não matarás!”. No entanto, poderá existir um certo conflito entre este mandamento e o do Novo Testamento que manda amar o próximo: ajudar a morrer uma pessoa que pede ajuda nesse sentido pode ser visto como uma forma de amor pelo próximo, daí chamar-se a este tipo de eutanásia “morte misericordiosa”.
Um Kantiano, isto é, alguém que considera a humanidade como um fim em si mesmo e que se recusa a tratar as pessoas como um meio, poderá viver um conflito semelhante. Por um lado, tem o dever de nunca matar, uma vez que estaria a tratar a pessoa como um meio para obter um fim, neste caso o fim do seu sofrimento. Por outro, é possível encarar a morte misericordiosa como um fim em si mesmo, se for isso que o doente quiser e precisar de ajuda.
 Um utilitarista, isto é, alguém que decide em função das consequências da acção, e não em função de deveres pré-estabelecidos, pensaria de forma muito diferente. A acção correcta será aquela que causar a maior felicidade ao maior número, pelo menos mais felicidade do que infelicidade. Se se verificar que ajudando alguém a morrer, sobretudo se o prazo de vida não for longo, se termina com o seu sofrimento, além do da família, a eutanásia tem justificação: não trará felicidade, mas traz menos infelicidade.

 Efeitos secundários da eutanásia
A morte do paciente por eutanásia pode implicar a violação da lei – pense-se nos casos de Ramon Sampedro em Espanha e das mais recentes recusas nos tribunais franceses -, de forma que a pessoa que ajudar o paciente a morrer corre o risco de ser condenado. Colocando-se outra questão ética: até que ponto poderá a violação da lei ser moralmente aceite? Casos como os de Aristides Sousa Mendes, entre outros herois anónimos que não hesitaram em desafiar a autoridade para proteger seres humanos indefesos, são exemplo disso mesmo.
Outro efeito secundário da prática da eutanásia é a possibilidade de facilitar a vida aos médicos sem escrúpulos que matam pacientes fingindo que estão a cumprir o seu desejo. Ou seja, a legalização da eutanásia voluntária poderá facilitar a vida a quem quiser implantar uma política de eutanásia involuntária.

Esboço de uma reflexão crítica
A questão da eutanásia, como a maioria das questões éticas, não é fácil. É verdade que podemos socorrer-nos desta ou daquela teoria para justificar as nossas decisões. Porém, e em última análise, a decisão dependerá sempre de nós, do nosso livre arbítrio.
A questão ética poderá ser atenuada se a lei de cada país enquadrar a prática, que afinal é muito antiga e continuará a ser silenciosamente praticada. Casos como os da Suiça e da Holanda poderão constituir uma boa referência para os legisladores de todo o mundo, enquadrando o fenómeno e estabelecendo as fronteiras entre o que é um suicídio assistido, eutanásia voluntária, e um potencial homicídio, no caso de confundirmos aquela com a eutanásia involuntária.
Pelas razões anteriores, e não só, justificam-se todas as discussões em torno do problema, sendo que mais tarde ou mais cedo seremos politicamente confrontados com a questão, quem sabe com um referendo, onde seremos chamados a escolher entre a moralidade cega e o direito a uma morte com dignidade, tal como dizia Ramon Sampedro.

. Ética 5: críticas ao utilitarismo


Embora pareça uma teoria apelativa, a verdade é que não é fácil pôr em prática os princípios do utilitarismo.
A primeira dificuldade que se levanta está relacionada com a impossibilidade de medirmos a felicidade. Pessoas diferentes sentem-se felizes por razões diferentes, o que torna a tarefa de estabelecer uma ideia de felicidade comum particularmente difícil. Como comparar, por exemplo, a felicidade experimentada por um adepto de futebol quando a sua equipa marca um golo fabuloso e a de um jovem casal que acaba de ter o seu primeiro filho? E a felicidade experimentada nestes dois casos com o prazer que sentimos quando comemos o nosso prato favorito? Será que estamos a falar da mesma felicidade? Enfim, como calcular a felicidade?
Em relação a esta questão, Stuart Mill propôs que se distinguissem dois tipos de prazer, os elevados e os mais baixos. Os primeiros seriam os prazeres intelectuais. A felicidade sentida, por exemplo, quando lemos um livro de que gostamos muito ou ouvimos a nossa música favorita. Os segundos seriam os prazeres físicos, mais básicos, como acontece quando comemos um gelado ou bebemos um sumo deliciosos numa tarde quente de verão. Uma divisão um pouco elitista, uma vez que resulta das suas preferências particulares e dos interesses da sua classe social. Ou seja, a dificuldade permanece, não é fácil comparar a felicidade experimentada por pessoas diferentes em circunstâncias distintas.
Outra objeção ao utilitarismo tem a ver com o facto de este permitir justificar muitas ações habitualmente consideradas imorais. A pena de morte, por exemplo. Há países que mantêm esta pena por estarem convencidos de que desta maneira vão diminuir a taxa de crimes violentos, isto é, que o bem comum resultante da sua aplicação é muito maior do que o sofrimento particular do condenado e dos seus familiares.
Para lá das críticas anteriores, o utilitarismo parece justificar algumas ações verdadeiramente absurdas. Uma vez que o princípio é a felicidade global, somos levados a crer que seria preferível viver num estado de felicidade artificial - se um cientista inventasse uma substância que nos mantém constantemente felizes - do que num mundo em que somos obrigados a ponderar e a tomar as nossas decisões.
Outro caso difícil tem a ver com a importância que damos à nossa palavra. Para Kant, devemos manter as nossas promessas independentemente das consequências, trata-se de um princípio categórico, é uma questão de integridade e dignidade. Para um utilitarista, por sua vez, manter a palavra é um bem relativo. Por exemplo, um utilitarista não desconsideraria a possibilidade de não pagar uma dívida, se o credor se tivesse esquecido e fosse muito rico. Neste caso, a felicidade do devedor seria maior do que a infelicidade do credor, sobretudo porque o dinheiro não lhe faria muita falta.
Por último, e talvez seja esta a crítica mais importante, é muito difícil prever as verdadeiras consequências das nossas ações. Um pai que bate no filho quando este comete uma asneira poderá fazê-lo porque está convencido de que assim evitará situações potencialmente perigosas. A verdade, porém, é que nunca poderá ter a certeza se os benefícios imediatos da sua ação serão maiores do que a possibilidade de estar a interferir a médio e longo prazo no desenvolvimento emocional da criança. Traumatizando-a, por exemplo.


. Ética 4: o utilitarismo de Stuart Mill


Ao contrário de Kant, Stuart Mill (1806-1873) é consequencialista. Isto significa que para este filósofo as ações são avaliadas em função das consequências que geram. Dito de outro modo: podemos considerar uma ação boa porque o resultado dessa ação é desejável e não porque se baseia numa intenção boa. Por exemplo, Kant afirmaria que mentir é sempre errado, em qualquer circunstância e independentemente das consequências, uma vez que a mentira se opõe ao nosso dever de dizer sempre a verdade. Stuart Mill, por sua vez, entende que alguns fins justificam os meios, ou seja, mentir não é uma ação errada em si mesma, sobretudo se com isso evitarmos um mal maior.
A teoria de Stuart Mill, inspirada em Jeremy Bentham (1748-1832), tem o nome de utilitarismo e baseia-se no pressuposto de que o grande objetivo da ação humana é a felicidade. Segundo esta perspetiva, uma ação boa é aquela que gerar a maior felicidade possível para o maior número de pessoas possível. Ou, pelo menos, mais felicidade do que infelicidade. Este princípio ficou conhecido como o princípio da maior felicidade possível ou princípio da utilidade. Isto quer dizer que para um utilitarista a boa ação pode ser calculada examinando as consequências prováveis dos vários cursos possíveis de ação. O que nem sempre é fácil, como veremos de seguida.




terça-feira, 12 de março de 2013

. Ética 3: críticas à ética kantiana


A crítica mais comum vai no sentido de considerar a ética kantiana demasiado formal, sobretudo o princípio da universalizabilidade. Isto é, kant não nos ajuda muito nos momentos de decisão efetiva, apenas nos dá um enquadramento muito geral, uma maneira de pensar. Imaginem como seria, por exemplo, se tivéssemos que formular mentalmente o imperativo categórico sempre que se trata de decidir. Pois é, o mais certo é que o momento deixasse de ser oportuno e a decisão de fazer sentido. Numa palavra, a ética kantiana é vazia. Quando aquilo que precisamos, na maioria das vezes, é indicações precisas e materiais que nos orientem nas decisões. É verdade que esta crítica negligencia, isto é, ignora, a segunda formulação do imperativo categórico segundo o qual devemos tratar os outros como um fim e nunca como um meio. Uma formulação menos vaga, de facto, com algum conteúdo. Ainda assim, a ética kantiana não nos ajuda em muitas questões morais, como quando somos confrontados, por exemplo, com uma situação de conflito de deveres. Uma vez que apenas nos diz para seguir o nosso dever, como vamos agir quando somos obrigados a decidir entre dois deveres que se opõem? Imagina, por exemplo, que vives numa ditadura e um dos teus melhores amigos pertence à resistência. Imagina também que a polícia secreta, tendo descoberto a atividade do teu amigo, te faz uma visita surpresa e te pergunta onde se encontra ele. Que farias nessa situação? Contavas a verdade e condenavas o teu amigo à prisão? Ou mentias-lhes para proteger o teu amigo, arriscando a tua própria liberdade? Verdade ou amizade? Pois é, por estranho que pareça Kant não nos ajuda nestas situações, também conhecidas por dilemas éticos. Antígona, na literatura clássica, e Aristides Sousa Mendes, na realidade, são ótimos exemplos de alguém que viveu dilemas particularmente difíceis. Aproveita as férias para conhecer as respetivas histórias!
Outra crítica recorrente tem a ver com o facto de ser logicamente possível universalizar máximas que nada têm a ver com a moral -amorais- e até imorais. Por exemplo, nada me impede de universalizar a máxima "Pisca o olho sempre que te cruzares com uma pessoa do sexo oposto ao teu", mas isso nada tem a ver com a moral, é amoral. Assim como poderia universalizar consistentemente a máxima "Maltrata qualquer pessoa que te estorve". Uma crítica demasiado radical , no entanto, uma vez que ignora, mais uma vez, a segunda versão do imperativo categórico. Maltratar alguém que nos estorva dificilmente será tratar as pessoas como um fim em si mesmo.
A teoria é igualmente criticada pela importância que dá aos sentimentos. É verdade que Kant substima os sentimentos porque os sentimentos jamais garantiriam a universalidade que pretende. São eles que nos distinguem uns dos outros, ninguém sente da mesma maneira, e Kant está interessado numa moral que valha de igual modo para todos, que por isso só pode estar fundada na razão. Ainda assim, podemos considerar a sua visão excessiva. Sentimentos como a compaixão, a simpatia e o remorso dificilmente poderão ser considerados amorais, como kant sugere. Pelo contrário, há muitas pessoas que entendem que esses sentimentos, entre outros, estão na base de ações genuinamente morais.
Por último, a teoria kantiana é criticada porque não dá importância nenhuma às consequências da ação. O que significa que idiotas bem intencionados, incompetentes e outros negligentes que, involuntariamente, causem dano a outros, podem ser inocentes à luz da teoria kantiana: as consequências não foram as melhores, mas como não era essa a intenção... Se também pensas assim, se consideras que as consequências devem ser tidas em conta quando se trata de avaliar uma ação, isso significa que talvez sejas consequencialista, como Stuart Mill. Lê as publicações que se seguem e tira as tuas conclusões.

segunda-feira, 11 de março de 2013

. Ética 2: O formalismo kantiano


Segundo Kant, uma ação é verdadeiramente boa quando assenta numa intenção igualmente boa. A intenção é boa quando é pura, isto é, quando expressa uma vontade de fazer o bem pelo bem, porque esse é o nosso dever, independentemente das consequências que daí possam advir.
Fazer o bem porque isso nos põe a bem com a nossa consciência, porque alimentamos o desejo de ser recompensados por isso, ou porque simplesmente me comovo perante a desigualdade e a injustiça, ainda que boas, não são ações verdadeiramente boas. E isto por uma razão muito simples: a ação boa não deve ser motivada por razões externas, mas porque esse é o nosso dever.
Quando agimos segundo uma razão exterior, por exemplo, quando fazemos doações a instituições de solidariedade social porque teremos benefícios fiscais, ou quando dou esmola porque me comovo, estamos a ser determinados heteronomamente, isto é, por fatores externos à vontade. No primeiro caso pela ideia de recompensa, no segundo pelo sentimento de compaixão. Ainda que não estejamos perante ações más, pelo contrário, Kant não as considera verdadeiramente boas porque não são a expressão de uma vontade autónoma, mas heterónoma. Dito de outro modo: devemos agir bem porque percebemos autonomamente que esse é o nosso dever e não porque heteronomamnete somos impelidos a fazê-lo. Ou seja, para sabermos se alguém está a agir moralmente temos de saber se a sua intenção é cumprir incondicionalmente o seu dever. Não é suficiente saber, por exemplo, se o Bom Samaritano ajudou o homem que precisava de ajuda. Uma vez que o Samaritano podia ter agido em função do seu próprio interesse, para que fosse reconhecido pela sua boa ação, ou simplesmente porque se comoveu.
O que Kant quer dizer é que não podemos fazer depender a moral de factores que não controlamos, como as consequências da nossa ação, porque são imprevisíveis na sua totalidade, e os sentimentos, mesmo que bons, porque são incontroláveis por natureza. Quando agimos em função das consequências que pensamos vir a gerar, diz-se que agimos segundo um imperativo hipotético. Isto é, de acordo com um princípio condicional: " Se não queres ir para a prisão, não deves roubar". Quando, por sua vez, agimos em de acordo com os sentimentos, que variam de pessoa para pessoa, ficamos sem saber se todos agiriam do mesmo modo nas mesmas circunstâncias. O contrário, portanto, daquilo que Kant propõe: uma ação moral realizada por dever, por respeito pela lei moral independentemente das consequências e daquilo que possa, ou não, comover-nos. O mesmo é dizer segundo um imperativo categórico fundado exclusivamente na razão, de modo a poder ser universalizado.
Como já terás percebido, um imperativo, ou máxima, é o pensamento que está por detrás da acção, o princípio que a inspira. Quando não volto costas ao perigo, por exemplo, podemos afirmar que estou a agir segundo a máxima "Sê corajoso!". A diferença entre os imperativos hipotéticos e os categóricos é que os segundos se apresentam como um dever absoluto, isto é, que devemos pôr em prática independentemente das consequências e em todas as circunstâncias. Para utilizarmos o mesmo exemplo: devo ser corajoso porque é isso que eu devo fazer e não porque isso me pode trazer este ou aquele benefício. E é isto que Kant pretende para o imperativo moral, que seja categórico, que valha por si mesmo e de igual modo para todos. O mesmo é dizer, um princípio absolutamente racional.
O imperativo categórico, exatamente pelas razões expostas, é: "Age de tal modo que possas converter a máxima da tua ação numa lei universal". Como podes verificar, não é um imperativo que nos manda agir deste ou daquele modo, como acontece no cristianismo, além de que não faz depender a ação do resultado esperado. Trata-se de uma intenção pura e absolutamente fundada na razão, o que transforma a moral Kantiana numa moral formal. Isto é, em vez de nos dar indicações precisas, para esta ou aquela situação específicas, dá-nos uma fórmula, uma forma de raciocinar que devemos aplicar sempre que se trata de agir moralmente. Ficando deste modo garantido que a ação moral não depende dos sentimentos de cada um, mas de uma vontade racional. E que vontade é essa? A vontade de agir de tal modo que todos possam agir da mesma maneira em circunstâncias semelhantes. Se, por exemplo, alguém agir segundo a máxima "Sê um parasita, vive à custa das outras pessoas", não estará a agir moralmente, uma vez que a máxima não pode ser seguida por todos - se todos fôssemos parasitas não restaria ninguém para ser parasitado". Uma fórmula a que se atribui o nome de Princípio da Universalizabilidade. No fundo, uma versão formal da regra de ouro do cristianismo, também ela universalizável: "Não faças aos outros o que não desejas para ti".  Um princípio um pouco vago e abstrato, é verdade, mas talvez por isso Kant tenha enunciado uma segunda versão: "Trata os outros como fins, nunca como meios". Ou seja, devemos respeitar cada um na sua humanidade, como um fim em si mesmo, e nunca como trampolim para atingir outros objetivos. Devemos, por exemplo, respeitar os outros porque é esse o nosso dever, e não porque ao respeitar o outro vou receber em troca a sua simpatia.
Em suma, Kant é um verdadeiro iluminista. Rompe com as morais tradicionais, que se confundem com uma série de mandamentos preescritos por uma autoridade exterior, como acontece com o cristianismo, daí ser uma ética material. Para criar uma moral única e exclusivamente fundada na razão, sem receitas prévias, obrigando-nos a pensar a cada momento de determinada forma, daí ser uma ética formal, e em nome de todos. Numa palavra, universal.




domingo, 10 de março de 2013

. Ética 1: como agir corretamente?


É difícil escrever o que quer que seja após uma aula tão clara como aquela a que acabas de assistir. Ainda assim, uma vez que temos que prosseguir com as nossas, isolemos algumas ideias:
1. Ainda que a atitude distante e reflexiva do filósofo rompa com a atitude do homem vulgar, submerso nos problemas do dia a dia que convém resolver a cada momento, a Filosofia acaba por nos aproximar da vida, uma vez que é ela o verdadeiro motivo da reflexão.
2. Viver é estar obrigado a tomar decisões. É isso, aliás, que nos distingue dos animais. As leoas caçam sempre o mesmo e da mesma maneira para alimentar as suas crias, é assim, não há nada a fazer, é a sua natureza. Nós, seres humanos, podemos decidir entre caçar e não caçar. O mesmo em relação ao modo como nos alimentamos, podemos comer moderadamente ou de modo irracional, de tudo ou tornarmo-nos vegetarianos. Há até quem faça greve de fome em nome de valores que consideram fundamentais.
3. Decidir pode ser uma tarefa difícil e às vezes até pode tornar-se trágico. Sobretudo quando somos confrontados com um dilema em que ficamos sem saber como fundamentar a nossa decisão.
4. Em termos gerais há duas maneiras de fundamentar as nossas decisões, que às vezes entram em conflito. Podemos fundamentar as nossas decisões em princípios pré-estabelecidos, numa ideia de dever que inspira as nossas decisões independentemente dos seus resultados. Mas também podemos decidir em função das consequências que prevemos seguirem-se à nossa ação.
5. Às teorias que defendem que devemos agir bem independentemente das consequências da nossa ação, isto é, que agir bem é seguir aquilo que é considerado uma intenção boa, atribui-se o nome de éticas deontológicas ou intencionalistas. Àquelas que defendem que as nossas ações devem resultar de um cálculo que dá mais importâncias às consequências do que a uma qualquer noção apriori de dever, dá-se o nome de éticas consequencialistas.
6. Os melhores exemplos de uma ética deontológica ou intencionalista são o cristianismo e a moral de Kant, um filósofo que já conheces. O cristianismo porque se traduz numa série de mandamentos que os cristãos deverão pôr em prática. Kant, embora isso não se traduza numa tábua de prescrições, porque está convencido de que nós, seres humanos, devemos cumprir incondicionalmente o nosse dever, o mesmo é dizer agir segundo uma vontade boa independentemente das circunstâncias. Como é que isso se processa é o que veremos nas próximas aulas.
7. Os melhores exemplos de uma ética consequencialista são as propostas de Jeremy Bentham e Stuar Mill, ambos convencidos de que devemos avaliar cada situação em função da sua especificidade, calculando as consequências da nossa ação, independentemente de qualquer mandamento ou receita previamente traçados cujo formalismo poderá impedir-nos de agir.

quinta-feira, 7 de março de 2013

. Immanuel Kant por Fernando Savater


. Kant e a superação da oposição entre racionalismo e empirismo


Depois de compreendermos a argumento dos céticos, que negam a possibilidade de qualquer conhecimento, a proposta racionalista de Descartes e o empirismo de David Hume, que acreditavam na existência de crenças básicas capazes de sustentar o conhecimento, a pergunta "será possível conhecer?" ficaria sem uma boa parte da resposta se não fizéssemos uma referência a Immanuel Kant. 
Tal como defendiam os empiristas, defende que num primeiro momento somos sempre estimulados pelo mundo exterior, registamos sensações, a base das perceções que em Kant têm o nome de intuições sensíveis. É esse o papel da sensibilidade, registar passivamente os dados provenientes dos sentidos. Num segundo momento, agora mais próximo dos racionalistas, o entendimento entra em ação e organiza as intuições sensíveis. Levando-nos, por exemplo, a enquadrar essas intuições no espaço e no tempo, dois conceitos que detemos a priori. Daí podermos afirmar que Kant supera dialeticamente - supera sem anular - o empirismo e o racionalismo: todo o conhecimento começa na experiência mas nem todo deriva dela. O mesmo é dizer que as intuições de nada serviriam sem os conceitos que as organizam, tratar-se-ia de um registo caótico de sensações, sequenciais mas sem sentido, como acontece com os animais para quem não existe noção de futuro. Assim como de nada serviria estarmos habilitados para conhecer e ver organizadamente, se nada tivessemos para organizar, se não tivéssemos a capacidade de ser impressionados pelo mundo exterior: pensamentos sem conteúdos são vazios, intuições sem conceitos são cegas.
O melhor exemplo da superação de que falo são os juízos sintéticos a priori, uma novidade kantiana. Como sabem do estudo da Lógica, os juízos sintéticos são extensivos, o predicado acrescenta informação à que colhemos da mera análise do sujeito, a posteriori, portanto: "O Rui é alto.". Enquanto que os a priori são analíticos, o predicado não é acrescentado pela experiência, resulta da mera análise do sujeito: "O triângulo tem três ângulos.". Ou seja, opõem-se. Ora, a novidade está exatamente aqui: Kant fala de juízos sintéticos a priori. Por um lado, o predicado não está incluído no sujeito, trata-se de um conceito distinto, acrescenta informação, é extensivo. Por outro, conseguimos perceber a sua necessidade sem recorrer à experiência, a priori. É o que acontece, por exemplo, com os juízos da geometria: "A reta é a distância mais curta entre dois pontos.". A noção de "distância mais curta" não está incluída na noção de reta. No entanto, todos percebemos que o juízo é necessariamente verdadeiro sem termos que fazer a experiência de medir.
Se quiseres saber mais sobre este grande filósofo do século XVIII, o século das Luzes, podes ver o vídeo em cima. Ajudar-te-á a perceber melhor o que acabas de ler, além de que poderá ser um bom tónico para as aulas que se adivinham sobre a Moral do mesmo autor: sapere aude!


segunda-feira, 4 de março de 2013

. Racionalismo versus empirismo


. Os excessos de David Hume


Muito embora estejamos na presença de um filósofo que jamais poderá ser ignorado quando se trata de discutir o problema da origem e possibilidade do conhecimento, a verdade é que também David Hume está sujeito à crítica. A ideia de que todo o conhecimento tem origem na experiência sensível e aí termina levou-o, de facto, a ignorar algumas situações e a cometer outros excessos:
1. Ficamos sem poder explicar as alucinações percetivas. São tão ou mais intensas que as impressões, mas não cabem dentro dessa categoria, uma vez que não existe nenhum objeto que lhe corresponda.
2. Basear o princípio da causalidade no hábito do observador e na repetição dos fenómenos observados impede-nos de distinguir as leis da natureza, que não admitem exceção, e as generalizações acidentais, necessárias até prova em contrário.
3. Fica por explicar por que razão não podemos reconhecer ao conhecimento de questões de facto a mesma necessidade que reconhece ao conhecimento que resulta da relação de ideias.
4. Se o conhecimento da Matemática é tão vazio e formal como afirma, como se explica que recorramos a ela para estudar a natureza física?

. David Hume: o problema da causalidade e a indução


O empirismo de David Hume ganha a sua máxima expressão no modo como concebe o princípio da causalidade, isto é, uma ideia central para explicar o que ocorre na natureza e segundo a qual todos os fenómenos são necessariamente precedidos por uma causa em relação à qual são o efeito. Para os racionalistas, esta seria uma ideia a priori, independente e anterior à experiência. Para David Hume trata-se de um princípio a posterior e a questão deve ser colocada de outro modo. Não temos qualquer garantia racional de que observadas determinadas causas obtemos necessariamente os mesmos efeitos. Se é assim, ou melhor, se estamos convictos de que é assim, é porque a experiência constante e repetida dos fenómenos, isto é, o hábito, nos mostra que é assim: é porque observo sempre o fenómeno x precedendo o fenómeno y que concluo que x é a causa de y. Tal como fica estabelecido no texto que se segue: Hume argumentou que as inferências causais a respeito das questões de facto não são justificadas; no entanto, é para nós natural basear as nossas crenças e expectativas na experiência. O Sol sempre nasceu no horizonte, os limões sempre amargaram... Portanto, esperamos que o mundo continue sempre desta maneira. Não temos qualquer prova a priori de que o Sol, os limões... continuarão a comportar-se regularmente nesses aspetos; mas, tanto quanto é possível, estamos seguros de que tal acontecerá. (Alan Bailey e Dan O'Brien)
O mesmo para o raciocínio indutivo: não há qualquer garantia racional de que os fenómenos se repetirão ad eternum, trata-se de um raciocínio sem validade lógica. Se estamos convencidos de que amanhã o dia se sucederá à noite, não é porque se trata de uma necessidade lógica, mas porque a nossa experiência nos mostra que foi necessariamente assim. Da mesma forma que inferirmos que todos os corvos são pretos pela simples e única razão de que todos os corvos observados até hoje exibem essa cor.

. David Hume e a experiência como justificação do conhecimento


Ao contrário de Descartes, um racionalista para quem as ideias fundamentais na construção do conhecimento são inatas ou a priori, David Hume defende que todo o conhecimento se baseia na experiência, o que faz dele um empirista. Isto quer dizer que para o filósofo escocês as crenças básicas que tornam o conhecimento possível são a posteriori, isto é, são ideias construídas a partir da experiência por abstração ou indução. De seguida, veremos como isso se processa.
Antes da experiência, o ser humano, neste caso o sujeito do conhecimento, não detém qualquer conteúdo. A mente está vazia, é como uma página em branco à espera de ser preenchida. Uma tábua rasa, como disse outro empirista importante, John Locke. É na experiência, no contacto direto por intermédio dos sentidos, que o sujeito vai adquirindo informação. Ao resultado desse contacto David Hume atribui o nome de perceções, que tanto podem ser impressões simples - sensações e emoções - como ideias - representações mentais, sempre mais frágeis do que as primeiras: o mais vívido pensamento será sempre inferior à mais ténue das sensações. Ou seja, por mais complexas que sejam, as crenças substanciais têm sempre por base crenças simples acerca da nossa experiência direta - interna ou externa -. Dito de outro modo, as ideias dependem sempre das impressões, a matéria prima a apartir da qual são construídas. Se assim não fôr, isto é, se as ideias não tiverem na sua origem uma impressão correspondente, podemos afirmar tratar-se de uma ideia falsa ou um termo sem significado. É assim, por exemplo, que construímos por indução a ideia de que "Todos os corvos são pretos" - crença não básica -, porque os casos particulares de corvos observados - crença básica - parecem revelar isso mesmo. Mesmo a ideia de Deus, sem qualquer referente na experiência, obedece a este princípio: trata-se de uma ideia complexa - composta - construída a partir de ideias simples que resultam da reflexão sobre a nossa experiência interior.

A associação de ideias
Isoladas, as ideias não constituem conhecimento, são mera representação mental das impressões. Interligadas, permitem-nos construir crenças verdadeiras justificadas - David Hume prefere o termo crença ao termo conhecimento. Os princípios que regem a associação de ideias são três: semelhança, contiguidade espacio-temporal e causalidade. Por exemplo, quando afirmo que a neve é fria é porque as impressões provocadas respetivamente pela neve e pelo frio se encontram associadas. Repara que o "respetivamente" é importante, na medida em que podemos experimentar a sensação de frio na presença de outros objetos. Tal como no nosso exemplo dos corvos, em que as ideias de ave e de preto surgem associadas. Ou seja, as crenças não têm fundamento e natureza racional como defendia Descartes, são fruto de processos associativos consolidados e fortalecidos pela experiência e pelo hábito. Daí que possamos afirmar que a experiência também é critério de verdade, uma vez que é ela que nos permite distinguir ficção de realidade: posso associar as ideias de homem e cavalo e imaginar que existem centauros, mas não posso acreditar na sua existência, uma vez que o elo entre estas duas ideias não é consolidado/justificado pela experiência.

Tipos de conhecimento
Ainda assim, David Hume distingue dois tipos de conhecimento: os que exprimem simples associações de ideias e os que referem questões de facto e de existência. Os primeiros resultam da sua necessidade lógica, ou seja, são alcançáveis pelo raciocínio, não carecem de verificação empírica - não precisamos de verificálos fisicamente -. Tal como acontece, por exemplo, quando afirmamos que um triângulo tem três lados ou que 5 é metade de 10, não pode deixar de ser assim, pensar de modo contrário significaria entrar em contradição. Os segundos, tal como o nome indica, têm de ser comprovados pela experiência, de facto, uma vez que não resultam de uma necessidade lógica nem são simplesmente demonstráveis. Tal como acontece, por exemplo, se afirmar que a neve é fria.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

. David Hume por Fernando Savater


. Os erros de Descartes


Embora seja uma referência fundamental da história da filosofia e unanimemente considerado o pai da filosofia moderna, a verdade é que Descartes não está isento de críticas. E isto a diversos níveis:

1. Crítica ao argumento da ilusão
Apesar de os sentidos serem falíveis e podermos cometer erros no que respeita à visão de objetos à distância, existem observações das quais não podemos duvidar seriamente. Quer isto dizer que existem graus de certeza, e não podemos considerar todas as observações da mesma maneira. Por exemplo, dificilmente poderei duvidar que estou sentado neste momento a escrever este texto. Assim como não poderei duvidar seriamente que estou em Portugal, e não na Patagónia. Dito de outro modo: só posso considerar ilusórias algumas situações - duas retas paralelas que afunilam à medida que me afasto delas, por exemplo - porque há outras das quais não duvido e que servem de referência para classificar as primeiras. Da mesma forma que só sei qual é o avesso de um casaco porque sei qual é a frente, e o desvio em relação à norma.

2. Distinção entre sonho e realidade
A hipótese de que poderei estar sempre a sonhar é igualmente muito discutível. Não faz sentido dizer que toda a minha vida é um sonho. Se eu estivesse sempre a sonhar não teria qualquer noção de sonho. Tal como dizia em cima em relação à frente e avesso do casaco, só sei o que é sonhar porque sei o que é estar a cordado. Repara, no entanto, que esta crítica não destrói a posição dos céticos: o cético não afirma que podemos estar sempre a sonhar, mas que em momento nenhum podemos ter a certeza se estamos ou não a sonhar.
Outra das várias críticas à hipótese de que estaríamos sempre a sonhar foi feita por Norman Malcom. Este filósofo contemporâneo defendeu que se estívéssemos sempre a sonhar não poderíamos fazer a pergunta "será que estou a sonhar?", uma vez que fazer perguntas implica estar consciente, o que não acontece quando estamos a dormir. Uma crítica também ela criticável, uma vez que reflete uma nocão de sonho demasiado simplista. Sabe-se, por exemplo, que diferentes pessoas experimentam diferentes níveis de consciência enquanto dormem. Algumas têm o que é conhecido por "sonhos lúcidos" - sabemos que estamos a sonhar e continuamos a sonhar -, pelo que é possível estar consciente, pelo menos em parte, ao mesmo tempo que dormimos.

3. Crítica ao cogito
Alguns filósofos entendem que Descartes errou ao usar a expressão "eu penso". Se tivesse sido consistente com a sua abordagem cética inicial, deveria ter dito "Há pensamentos". Descartes está a pressupor que para haver pensamentos tem que haver alguém particular que pensa. Talvez porque é assim que a nossa linguagem está estruturada, levando-nos a crer que todo o pensamento precisa de um pensador. Mas podemos duvidar disso - o "eu" da expressão pode ser como o "ele" quando dizemos "Ele ainda vem chuva", que não refere nada -, sobretudo porque a hipótese do génio maligno ainda não foi excluída no momento em que formula a sua inferência célebre: Cogito, ergo sum.

4. O círculo cartesiano
Como vimos, sem Deus dificilmente se poderia construir algo sobre a base do cogito. É o próprio Descartes quem o afirma: só Deus pode garantir que não se engana quando pensa clara e distintamente. Por outro lado, também é ele quem o afirma, Deus existe porque concebe clara e distintamente a sua existência - tal como havia acontecido em relação ao cogito, trata-se de uma verdade evidente que não pode evitar -. Acontece, porém, que isto é uma falácia. Trata-se de raciocinar em círculo e a falácia é a falácia da circularidade: para saber que as ideias claras e distintas são verdadeiras tenho de saber primeiro que Deus existe, mas para saber que Deus existe tenho de ter primeiro a ideia clara e disitnta da sua existência.

5. A prova da existência de Deus
A prova da existência de Deus também é alvo de críticas, e isto por duas razões. Por um lado, uma vez que a hipótese do génio maligno ainda não foi excluída, Descartes não tem qualquer garantia de que a ideia de perfeição implica a existência de um ser perfeito. A convicção de que a ideia de ser perfeito só pode ter origem no próprio ser perfeito, uma vez que ele é imperfeito, pode não passar de mais um resultado da manipulação da sua mente pelo génio maligno. Por outro, não há boas razões para pensar que a ideia de ser perfeito tem de ser causada por um ser perfeito que existiria necessariamente. Afinal, eu posso ter a ideia de estudante perfeito e de ilha perfeita, mas daí não se segue que um e outra existam efetivamente.

Conclusão
Parece, pois, que Descartes não conseguiu provar satisfatoriamente a existência de Deus. Se não conseguiu provar satisfatoriamente a existência de Deus, então o cogito não é garantia de um conhecimento absoluto. Para alguns filósofos, isso é mais do que suficiente para mostrar que Descartes não resolveu o problema da possibilidade do conhecimento e que o argumento dos céticos persiste. Ou seja, é necessário encontrar outros fundamentos para o conhecimento, outro tipo de crenças básicas. É isso que farão os outros fundacionistas, os empiristas, entre os quais se encontra o filósofo que estudaremos de seguida: David Hume.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

. Descartes: em busca da primeira certeza


Como poderás verificar pela leitura do texto na publicação anterior, um texto muito parecido com o que poderás encontrar no teu manual (pág. 140-141) retirado do Discurso do Método, a obra mais conhecida de Descartes, o filósofo françês defende que o cogito, isto é, o pensamento, é a primeira verdade que se revela ao espírito como absolutamente verdadeira. Ou seja, o cogito é de tal modo evidente - não posso deixar de acreditar que existo enquanto penso - que pode assumir-se como axioma a partir do qual poderei extrair outras verdades. O fundamento ou a crença básica de que falávamos, e que por isso será a base de todo o edifício do conhecimento. O que é que isso significa e como é que Descartes chegou a essa evidência, é o que veremos de seguida.
Descartes começa por duvidar de tudo quanto podemos colocar em dúvida. E tudo significa mesmo tudo. A existência do mundo exterior, a distinção entre sonho e vigília, o próprio raciocínio. Fá-lo, no entanto, ao contrário dos céticos, não para provar que o conhecimento não é possível, mas para encontrar algo que resista à dúvida e assim possa ser uma base segura a partir da qual possa inferir outras verdades. Trata-se, por isso, de uma dúvida provisória - até que algo se revele indubitável - e metódica, uma vez que se confunde com o próprio método de busca pela verdade.
Em relação à existência do mundo exterior, o argumento é o seguinte: se os sentidos nos enganam às vezes, podem enganar-nos sempre. Quem é que nunca teve uma ilusão ótica? Já andaste na última carruagem do comboio? Pois é, se acreditarmos naquilo que vemos, ou que parece vermos, vamos acreditar que as linhas afunilam à medida que nos afastamos. E o calor no verão? Nunca viste o calor a emergir do alcatrão quente? Será que viste? E não vemos o sol a pôr-se? Mas não é o sol que se põe, correto? Logo não devemos confiar naquilo que vemos, ouvimos, cheiramos... Um argumento um pouco exagerado, é verdade, mas não te esqueças que Descartes tem mesmo que exagerar nesta fase do percurso, trata-se de encontrar um fundamento absolutamente indubitável.
Em relação à distinção entre sonho e vigília, também um pouco exagerado, o argumento é igualmente simples. Uma vez que quando sonhamos tudo nos parece real, sobretudo porque quando sonhamos não podemos sair do sonho e verificar que estamos a sonhar, devemos colocar a hipótese de que tudo não passa de um sonho.
O mesmo para o raciocínio. Se mesmo os mais habilitados se enganam por vezes, além dos erros que cometemos sem nos apercebermos deles (os paralogismos), então não podemos confiar no raciocínio.
Como se isto não bastasse, Descartes chega mesmo a colocar a hipótese de um génio maligno que estaria empenhado em enganar-nos a cada momento. Uma hipótese altamente rebuscada que, ainda assim, veio a ser recolocada já no século vinte sob o nome de cérebro numa cuba: e se eu não passasse um cérebro numa cuba de produtos químicos, ligado a uma série de fios por intermédio dos quais um cientista perverso cria em mim a ilusão da experiência sensorial? Do nosso ponto de vista, podemos levantar-nos e ir ao cinema ou assistir a um concerto. O que estaria a contecer, no entanto, é que o cientista estaria a estimular certos nervos de modo a criar a ilusão de que isso estaria a acontecer na realidade.
Numa palavra, Descarte faz uma epoché. Isto é, suspende o juízo e considera falso tudo quanto se revele minimamente duvidoso.
Levados a este extremo, ao contrário do que se poderia esperar e para desagrado dos céticos, Descartes descobre uma primeira verdade da qual não pode duvidar. Ao duvidar de tudo e ao colocar tudo em suspenso, percebe que não pode deixar de existir enquanto faz isso mesmo: duvidar. Duvida, logo existe enquanto ser que duvida. Repara que a existência de que estamos a falar é uma existência intelectual, o pensamento do ser que duvida enquanto duvida, separado do corpo. Em relação a esse, ao corpo, como em relação a todo o mundo exterior de que o corpo faz parta, Descartes ainda não tem razões para deixar de duvidar.
O cogito ou pensamento é, portanto, a primeira verdade que resiste ao poder corrosivo da dúvida, goza de imunidade, uma vez que não podemos duvidar de que estamos a duvidar, sob o risco de cairmos em contradição. Trata-se de uma impossibilidade lógica. Para duvidar, tenho que pensar. E para pensar, tenho que existir enquanto ser pensante. Trata-se, pois de uma evidência, algo a que Descartes não pode fugir. Não se descobre por raciocínio, não se infere de coisa alguma, é uma intuição racional que resulta da mera inspeção do espírito. Como Descartes também diz, uma ideia clara e distinta. Clara, porque não posso deixar de constatá-la, é evidente. Distinta, porque não se confunde com nenhuma outra.
A importância desta descoberta é dupla. Por um lado, Descartes define o fundamento que procurava, o alicerce que lhe faltava e a partir do qual pode extrarir ouras verdades. Por outro, ganha um critério de verdade - a clareza e disitinção -, uma vez que tudo o que se apresentar ao espírito da mesma forma, isto é, como ideia clara e distinta, deverá ser considerado verdadeiro.
No grupo das ideias claras e distintas estão, por exemplo, os princípios básicos da matemática e a ideia de Deus. Ideias inatas, das quais nos apercebemos sem ter que recorrer à experiência. Ao contrário das ideias adventícias e factícias, respetivamente fundadas nos sentidos e na imaginação, falíveis e geradores de dúvida.
A ideia de Deus, ou de ser perfeito, é particularmente importante, uma vez que é ela que permitirá abandonar o solipsismo - teoria que defende que só podemos ter certeza acerca de nós mesmos - em que Descartes acaba por cair. Não te esqueças que por ora Descartes só tem a certeza acerca de si mesmo enquanto ser pensante: um ser que pensa e tem ideias claras e distintas em si que não foi buscar senão a si mesmo. Com a existência de Deus garantida, que por definição não engana - Deus é sumamente bom -, e na posse de um critério de verdade - a clareza e distinção -, Descartes pode partir para a descoberta do mundo exterior e considerar verdadeiro tudo o que se revelar evidente. Como prova Descartes a existência de Deus? Mais ou menos assim:
1. Tenho a ideia de ser perfeito em mim, que só pode ter vindo dele, uma vez que eu sou imperfeito (duvido);
2. Se é perfeito tem que ter todas as propriedades/qualidades, caso contrário não seria perfeito;
3. Ora, a existência é uma propriedade/qualidade;
4. Logo, Deus existe, caso contrário faltar-lhe ia uma propriedade.
Para saberes se se trata, ou não, de um bom argumento, terás que ler a próxima publicação.

. Cogito ergo sum

Enquanto desta maneira rejeitamos tudo aquilo de que podemos duvidar, e que simulamos mesmo ser falso, supomos, facilmente, que não há Deus, nem céu, nem terra, e que não temos corpo. Mas não poderíamos igualmente supor que não existimos, enquanto duvidamos da verdade de todas estas coisas: porque, com efeito, temos tanta repugnância em conceber que aquele que pensa não existe verdadeiramente ao mesmo tempo que pensa que, apesar das mais extravagantes suposições, não poderíamos impedir-nos de acreditar que esta inferência EU PENSO, LOGO EXISTO, não seja verdadeira e, por conseguinte, a primeira e a mais certa que se apresenta àquele que conduz os seus pensamentos por ordem
(Descartes, Princípios da Filosofia, artigo 7)



. Possibilidade e origem do conhecimento


Em relação à questão da possibilidade do conhecimento devem registar-se duas respostas gerais, uma positiva e outra negativa. Aos que respondem afirmativamente, isto é, os que defendem que o conhecimento é possível, atribui-se o nome de dogmáticos e à sua posição dogmatismo. Aos que estão convencidos de que o conhecimento não é possível, isto é, que temos boas razões para duvidarmos da nossa capacidade de conhecer, atribui-se o nome de céticos.
A posição cética, ou ceticismo, embora radical, assenta na ideia de que não é possível conhecer porque as nossas justificações requerem sempre outras justificações em que possam basear-se, ad infinitum. Ou seja, os céticos defendem que as nossas justificações, sem o que não há conhecimento, remetem sempre para outras justificações anteriores, sendo que não há uma primeira que possa fundamentar verdadeiramente todas as outras. Trata-se do argumento da regressão infinita e pode ser enunciado da seguinte forma:
1. Se há conhecimento então há crenças justificadas
2. Não há crenças justificadas
3. Logo, não há conhecimento
Trata-se do Modus Tollens que já conheces, mas agora aplicado à questão da possibilidade do conhecimento. Claro que o argumento sofreu refutação, e os filósofos que o fizeram chamam-se fundacionistas. Porquê? É simples, porque estes filósofos, ao contrário dos céticos, estão convencidos que é possível encontrar um primeiro fundamento para as nossas justificações, uma espécie de crença básica, isto é, verdades auto-evidentes que não carecem de justificação anterior e que desse modo podem assegurar uma base segura para os nossos raciocínios. Dito de outro modo: os fundacionistas defendem que o argumento da regressão infinita tem uma premissas falsa - "Toda a justificação se infere de outras crenças" -. Ou seja, os fundacionistas defendem que é necesssário distinguir dois tipos de crença, as básicas e as não básicas. As básicas são uma evidência da razão, autojustificam-se e não são inferenciais (não resultam de uma inferência), resistem à corrosão da dúvida e podem por isso ser fundamentos epistémicos, verdadeiros axiomas a partir dos quais podemos raciocinar validamente. Além das não básicas, ou inferenciais, que resultam de uma inferência e são por isso justificadas por outras crenças.
Dentro do grupo dos fundacionistas, vamos encontrar Descartes e David Hume, os filósofos que estudaremos de seguida e cujas diferenças são em maior número do que as semelhanças. Como veremos, embora ambos defendam que o conhecimento é possível, isto é, que é possível determinar crenças básicas, já o mesmo não podemos dizer em relação à origem desses fundamentos. O primeiro, que a determinada altura recorre ao ceticismo, situa esses fundamentos na razão - a priori -, as ideias inatas de que falaremos, e a sua posição é conhecida por racionalismo ou fundacionismo cartesiano. O segundo defende que esses fundamentos provêm da experiência sensível - a posteriori - e a sua posição, por isso mesmo, é conhecida por empirismo ou fundacionismo clássico.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

. Conhecimento como crença verdadeira justificada (II)


A definição de conhecimento como crença verdadeira justificada foi aceite sem qualquer constestação durante mais de dois mil anos - não te esqueças que já Platão se referia ao conhecimento desse modo -. Hoje, continua a ser aceite, mas com alguns cuidados, sobretudo no que respeita à justificação que damos para os conhecimentos que afirmamos possuir. Isto porque em 1963 um filósofo americano, Edmund Gettier, forneceu alguns contra-exemplos - exemplos que contrariam a definição - que mostram que podemos ter uma crença verdadeira justificada sem que essa crença seja conhecimento. Tal como o que se segue:
Imagina que o Pedro vai à praia onde também se encontra a Mafalda. Imagina também que o Pedro não levou toalha porque está convencido que a Mafalda tem uma a mais na mochila e lha pode emprestar. O Pedro tem, portanto, uma crença. Que neste caso está justificada, uma vez que a Mafalda lhe tinha dito que levaria uma toalha a mais porque a Rita também lhe tinha pedido. Até aqui tudo bem. Agora imagina o seguinte: sem que o Pedro soubesse, a Rita mudou de ideias e telefonou à Mafalda a dizer que não ia, mas que a toalha continuaria a ser necessária, uma vez que o Manuel também ia e ele é um cabeça no ar. Como o Manuel é distraído e a Mafalda é boa companheira, esta leva a toalha a contar com ele. Ou seja, a Mafalda tinha uma toalha a mais, efetivamente, não por causa da Rita como o Pedro pensava, mas por causa do Manuel. Isto quer dizer que o Pedro tem uma crença verdadeira justificada. Logo, segundo a definição tradicional de conhecimento, o Pedro sabe disso. Mas será que sabe tal coisa? A resposta é não, uma vez que aquilo que justifica a crença do Pedro não é a razão pela qual a Mafalda levou a toalha extra. Ou seja, a crença do Pedro revelou-se verdadeira por acidente, por mera sorte. Conclusão: a crença verdadeira justificada não é suficiente para o conhecimento.
Atenção: como muitos outros filósofos disseram, os contra-exemplos de Gettier não serão suficientes para pôr em causa a definição tradicional de conhecimento, mas uma boa ocasião para fortalecer a noção de justificação requerida pela definição. Ou seja, para voltarmos ao exemplo, será que justificar uma crença porque alguém nos disse que é assim e não de outro modo, constitui uma boa justificação? E se a nossa fonte for um mentiroso compulsivo? Bom....agora é a tua vez de "puxar" pela cabela e engendrares os teus próprios contra-exemplos.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

. Conhecimento como crença verdadeira justificada (I)


Perguntar "o que é?" significa definir aquilo sobre o que fazemos a pergunta. Definir, por sua vez, significa isolar as propriedades comuns, e só essas, a todos os exemplares daquilo que queremos definir. Por exemplo: se quisermos definir o "quadrado", não devemos referir as características físicas deste ou daquele quadrado - a cor, o tamanho, o material de que é feito...-, uma vez que variarão de caso para caso, mas aquilo que é comum a todos os quadrados, os que existem e os que poderão vir a existir. Ou seja, devemos dizer que um quadrado é uma figura geométrica com quatro lados iguais cujas diagonais se cruzam rigorosamente ao centro, algo que verificaremos sempre na presença de um quadrado independentemente das diferenças físicas. Numa palavra, devo isolar as invariáveis.
Em Filosofia, as invariáveis, ou propriedades comuns a todos os casos particulares daquilo que queremos definir, chamam-se propriedades/condições necessárias e suficientes. Necessárias, porque temos que referi-las para saber de que estamos a falar, isto é, não pode deixar de ser assim. Suficientes, porque basta referir essas propriedades para identificar a realidade em questão, isto é, não é preciso mais nada senão isso mesmo.
Perguntemos agora "o que é o conhecimento?" e vejamos quais são as condições necessárias e suficientes para podermos afirmar que conhecemos.

Conhecimento e crença
A primeira condição para que possamos falar em conhecimento é a existência de uma crença. Isto é, conhecer implica acreditar naquilo que afirmamos conhecer, sob o risco de cairmos em contradição. Repara, no entanto, que crença não significa fé, no sentido de crença religiosa, mas convicção. Ora, isto quer dizer que acreditar - a crença - é uma condição necessária para podermos falar em conhecimento. Como, por exemplo, viver em Portugal é uma condição necessária para viver em Lisboa, porque todas as pessoas que vivem em Lisboa vivem em Portugal. Mas será que podemos afirmar que a existência de uma crença é uma condição suficiente para haver conhecimento? Da mesma forma que viver em Portugal é condição suficiente para viver na Europa? A resposta é não. Uma vez que eu posso acreditar em falsidades. Ou seja, para conhecer tenho que acreditar, mas não basta acreditar para saber. Dito de outro modo, a crença é uma condição necessária do conhecimento, mas não é suficiente.

Conhecimento e verdade
Nenhuma crença falsa é conhecimento. Não basta pensar que a Rita está na escola para que a proposição "A Rita está na escola" seja verdadeira. É necessário que a Rita esteja lá efectivamente e que isso possa ser constatado, isto é, que possa ser verificado. Isto quer dizer que o conhecimento é factivo, não podemos conhecer falsidades (ainda que possamos acreditar nelas). Sem verdade, portanto, não há conhecimento, e o critério de verdade é a factividade. Repara, no entanto, que afirmar que não podemos conhecer falsidades não significa que não possamos identificá-las. Afirmar "A Inês sabe que é falso que Lisboa é a capital do Brasil" é muito diferente de afirmar "A Inês sabe que Lisboa é a capital do Brasil". Ou seja, a verdade é uma condição necessária do conhecimento. Isto é, a crença tem de ser verdadeira - no tempo de Ptolomeu, as pessoas pensavam que a Terra estava imóvel no centro do universo, mas não sabiam tal coisa, pois não podiam... -. Mas será isso suficiente? A resposta, mais uma vez, é negativa. A verdade é uma condição necessária do conhecimento, mas não é uma condição suficiente. Quando a professora de Matemática pergunta ao Tomás "qual a raiz quadrada de quatro ?" e este lhe responde "dois", porque acha ou está convencido que é dois, o Tomás não revela conhecimento. Do facto de o "feeling" do Tomás se ter revelado certeiro não se segue que ele sabia a resposta. Crenças que se revelam verdadeiras por acaso não são conhecimento, é necessário que consigamos justificá-las.

Crença e justificação
Platão foi o primeiro a distinguir a crença do conhecimento, num diálogo chamado Teeteto, àcerca do conhecimento científico, que segundo o filósofo tanto se distingue da mera opinião como daquilo que chama opinião verdadeira. Ou seja, além de ser verdadeira, a crença deve ser justificada, ser acompanhada por um logos, sem o que não podemos falar em conhecimento. Mas o que significa isso? Em que consiste justificar uma crença verdadeira? Vejamos a o seguinte exemplo:
O Pedro acredita que vai passar de ano e a sua crença torna-se verdadeira. O pedro passa efectivamente de ano. Mas isso não significa que o Pedro sabia que ia passar de ano. Se à sua crença verdadeira juntarmos uma série de razões que o levaram a acreditar nisso - porque estudou, porque se interessa e coloca dúvidas, porque tem boas notas nos testes... -, aí sim, podemos falar de conhecimento.
Por outras palavras, e para recuperarmos a nossa estratégia inicial, a justificação é uma condição necessária para o conhecimento. Mas será isso suficiente? Basta justificarmos as nossas crenças para que constituam conhecimento? É a justificação uma condição suficiente? Aqui a resposta é igualmente negativa. Ptolomeu tinha uma boa justificação para acreditar que a Terra estava parada no centro do universo, mas não sabia (porque não podia...) que a Terra estava parada no centro do universo. Existem diferentes estados cognitivos, estejamos a falar de pessoas - as justificações das crianças são diferentes das justificações de um adulto letrado... - ou de civilizações - no estado cognitivo em que se encontrava Ptolomeu havia boas razões para acreditar na teoria geocêntrica -, mas os estados cognitivos não são perfeitos. As pessoas podem ter justificações para acreditar em falsidades. Os europeus, por exemplo, antes de saberem da existência da Austrália, tinham uma boa justificação para acreditar que todos os cisnes seriam brancos. Até lá terem ido e visto cisnes pretos. Logo, podemos ter crenças justificadas sem ter conhecimento. Melhor: a crença justificada não é uma condição suficiente para o conhecimento.
Em relação à justificação propriamente dita devemos assinalar três modalidades:
1) Justificação por correspondência. Trata-se da posição de Aristóteles, para quem uma crença é verdadeira quando existe uma adequação entre o que dizemos, as nossas proposições, e a realidade a que o nosso discurso se refere. É um critério de fácil aplicação, sobretudo se estivermos a falar de realidades empíricas, isto é, verificáveis através da experiência. Ex: a proposição "A neve é branca" é verdadeira porque posso verificá-lo empiricamente, posso pegar num pedaço de neve e constatá-lo.
2) Justificação por coerência. Trata-se de um critério utilizado quando não podemos verificar diretamente a verdade de uma proposição. Neste caso, parte-se de determinadas evidências que, conjugadas com outras evidências, permitem extrair uma conclusão que oferece alguma segurança. Trata-se de um raciocínio dedutivo, válido logicamente, aquele que já estudaste e te permite extrair conclusões verdadeiras a partir de premissas igualmente verdadeiras. É assim, por exemplo, que a ciência evolui. Extraindo conclusões a partir de verdades entretanto estabelecidas, umas também pelo método da coerência, outras pelo da correspondência, como quase sempre acontece nas premissas. Como é assim, para dar outro exemplo, que funcionam os investigadores criminais: embora ninguém tivesse visto a Madalena a dar a estocada final no Frederico, os vizinhos ouviram-nos a gritar momentos antes, assim como viram a Madalena abandonando a casa à pressa e aparentemente desorientada, além de que não havia vestígios da presença de outras pessoas no interior da casa...logo, a Madalena é responsável pelo crime ali ocorrido.
3) Justificação pela prática. Neste caso a verdade de uma proposição é estabelecida pelos resultados que a sua aceitação permite obter, isto é, em função das consequências. É um critério usado, não para testar factos, mas hipóteses. Por exemplo: se verificarmos que os jovens são mais produtivos quando submetidos a situações de disciplina rigorosa, sobretudo mais responsáveis, então devemos poder concluir que "a disciplina conduz à produtividade e à responsabilidade".

Conclusão:
Isoladas, as três condições, são necessárias, mas não são suficientes. Juntas, no entanto, permitem obter a definição de conhecimento que procurávamos. Mas só nesse caso, isto é, só e somente se estiverem reunidas as três condições. Daí que possamos terminar afirmando que S sabe ou conhece P se e somente se S acredita que P, P é verdadeira e há uma justificação para S acreditar que P. Se esta é, ou não, uma boa definição, é o que veremos de seguida.