domingo, 17 de março de 2013

. Ética aplicada: o caso da eutanásia


Identificação do problema
Imagina que conheces alguém em grande sofrimento e sem perspectivas de viver uma vida que valha a pena. Será moralmente aceitável ajudá-lo a morrer? No caso de uma pessoa muito velha ou um doente crónico, por exemplo, será moralmente aceitável desligar a máquina de apoio à vida ou administrar uma droga letal? Numa palavra, até que ponto podemos falar de morte misericordiosa? Como mostrarei de seguida, esta é uma questão que sugere respostas distintas consoante a teoria ética que adoptarmos. Antes disso, porém, é necessário estabelecer a distinção entre diferentes tipos de eutanásia:
- falamos em eutanásia voluntária quando o paciente deseja morrer e expressa o seu desejo, trata-se de uma espécie de suicídio assistido já praticado legalmente na Suiça e na Holanda;
- a eutanásia involuntária dá-se quando o paciente não deseja morrer e o seu desejo é ignorado. Em muitos casos equivale a assassínio;
- a eutanásia não voluntária corresponde à situação em que o paciente não está consciente ou em condições de exprimir o seu desejo;

Discussão do problema: a eutanásia voluntária
 Um cristão, cuja ética se baseia na ideia de dever, terá muitas dúvidas em relação à justificação moral da eutanásia voluntária, uma vez que contraria o mandamento “Não matarás!”. No entanto, poderá existir um certo conflito entre este mandamento e o do Novo Testamento que manda amar o próximo: ajudar a morrer uma pessoa que pede ajuda nesse sentido pode ser visto como uma forma de amor pelo próximo, daí chamar-se a este tipo de eutanásia “morte misericordiosa”.
Um Kantiano, isto é, alguém que considera a humanidade como um fim em si mesmo e que se recusa a tratar as pessoas como um meio, poderá viver um conflito semelhante. Por um lado, tem o dever de nunca matar, uma vez que estaria a tratar a pessoa como um meio para obter um fim, neste caso o fim do seu sofrimento. Por outro, é possível encarar a morte misericordiosa como um fim em si mesmo, se for isso que o doente quiser e precisar de ajuda.
 Um utilitarista, isto é, alguém que decide em função das consequências da acção, e não em função de deveres pré-estabelecidos, pensaria de forma muito diferente. A acção correcta será aquela que causar a maior felicidade ao maior número, pelo menos mais felicidade do que infelicidade. Se se verificar que ajudando alguém a morrer, sobretudo se o prazo de vida não for longo, se termina com o seu sofrimento, além do da família, a eutanásia tem justificação: não trará felicidade, mas traz menos infelicidade.

 Efeitos secundários da eutanásia
A morte do paciente por eutanásia pode implicar a violação da lei – pense-se nos casos de Ramon Sampedro em Espanha e das mais recentes recusas nos tribunais franceses -, de forma que a pessoa que ajudar o paciente a morrer corre o risco de ser condenado. Colocando-se outra questão ética: até que ponto poderá a violação da lei ser moralmente aceite? Casos como os de Aristides Sousa Mendes, entre outros herois anónimos que não hesitaram em desafiar a autoridade para proteger seres humanos indefesos, são exemplo disso mesmo.
Outro efeito secundário da prática da eutanásia é a possibilidade de facilitar a vida aos médicos sem escrúpulos que matam pacientes fingindo que estão a cumprir o seu desejo. Ou seja, a legalização da eutanásia voluntária poderá facilitar a vida a quem quiser implantar uma política de eutanásia involuntária.

Esboço de uma reflexão crítica
A questão da eutanásia, como a maioria das questões éticas, não é fácil. É verdade que podemos socorrer-nos desta ou daquela teoria para justificar as nossas decisões. Porém, e em última análise, a decisão dependerá sempre de nós, do nosso livre arbítrio.
A questão ética poderá ser atenuada se a lei de cada país enquadrar a prática, que afinal é muito antiga e continuará a ser silenciosamente praticada. Casos como os da Suiça e da Holanda poderão constituir uma boa referência para os legisladores de todo o mundo, enquadrando o fenómeno e estabelecendo as fronteiras entre o que é um suicídio assistido, eutanásia voluntária, e um potencial homicídio, no caso de confundirmos aquela com a eutanásia involuntária.
Pelas razões anteriores, e não só, justificam-se todas as discussões em torno do problema, sendo que mais tarde ou mais cedo seremos politicamente confrontados com a questão, quem sabe com um referendo, onde seremos chamados a escolher entre a moralidade cega e o direito a uma morte com dignidade, tal como dizia Ramon Sampedro.

. Ética 5: críticas ao utilitarismo


Embora pareça uma teoria apelativa, a verdade é que não é fácil pôr em prática os princípios do utilitarismo.
A primeira dificuldade que se levanta está relacionada com a impossibilidade de medirmos a felicidade. Pessoas diferentes sentem-se felizes por razões diferentes, o que torna a tarefa de estabelecer uma ideia de felicidade comum particularmente difícil. Como comparar, por exemplo, a felicidade experimentada por um adepto de futebol quando a sua equipa marca um golo fabuloso e a de um jovem casal que acaba de ter o seu primeiro filho? E a felicidade experimentada nestes dois casos com o prazer que sentimos quando comemos o nosso prato favorito? Será que estamos a falar da mesma felicidade? Enfim, como calcular a felicidade?
Em relação a esta questão, Stuart Mill propôs que se distinguissem dois tipos de prazer, os elevados e os mais baixos. Os primeiros seriam os prazeres intelectuais. A felicidade sentida, por exemplo, quando lemos um livro de que gostamos muito ou ouvimos a nossa música favorita. Os segundos seriam os prazeres físicos, mais básicos, como acontece quando comemos um gelado ou bebemos um sumo deliciosos numa tarde quente de verão. Uma divisão um pouco elitista, uma vez que resulta das suas preferências particulares e dos interesses da sua classe social. Ou seja, a dificuldade permanece, não é fácil comparar a felicidade experimentada por pessoas diferentes em circunstâncias distintas.
Outra objeção ao utilitarismo tem a ver com o facto de este permitir justificar muitas ações habitualmente consideradas imorais. A pena de morte, por exemplo. Há países que mantêm esta pena por estarem convencidos de que desta maneira vão diminuir a taxa de crimes violentos, isto é, que o bem comum resultante da sua aplicação é muito maior do que o sofrimento particular do condenado e dos seus familiares.
Para lá das críticas anteriores, o utilitarismo parece justificar algumas ações verdadeiramente absurdas. Uma vez que o princípio é a felicidade global, somos levados a crer que seria preferível viver num estado de felicidade artificial - se um cientista inventasse uma substância que nos mantém constantemente felizes - do que num mundo em que somos obrigados a ponderar e a tomar as nossas decisões.
Outro caso difícil tem a ver com a importância que damos à nossa palavra. Para Kant, devemos manter as nossas promessas independentemente das consequências, trata-se de um princípio categórico, é uma questão de integridade e dignidade. Para um utilitarista, por sua vez, manter a palavra é um bem relativo. Por exemplo, um utilitarista não desconsideraria a possibilidade de não pagar uma dívida, se o credor se tivesse esquecido e fosse muito rico. Neste caso, a felicidade do devedor seria maior do que a infelicidade do credor, sobretudo porque o dinheiro não lhe faria muita falta.
Por último, e talvez seja esta a crítica mais importante, é muito difícil prever as verdadeiras consequências das nossas ações. Um pai que bate no filho quando este comete uma asneira poderá fazê-lo porque está convencido de que assim evitará situações potencialmente perigosas. A verdade, porém, é que nunca poderá ter a certeza se os benefícios imediatos da sua ação serão maiores do que a possibilidade de estar a interferir a médio e longo prazo no desenvolvimento emocional da criança. Traumatizando-a, por exemplo.


. Ética 4: o utilitarismo de Stuart Mill


Ao contrário de Kant, Stuart Mill (1806-1873) é consequencialista. Isto significa que para este filósofo as ações são avaliadas em função das consequências que geram. Dito de outro modo: podemos considerar uma ação boa porque o resultado dessa ação é desejável e não porque se baseia numa intenção boa. Por exemplo, Kant afirmaria que mentir é sempre errado, em qualquer circunstância e independentemente das consequências, uma vez que a mentira se opõe ao nosso dever de dizer sempre a verdade. Stuart Mill, por sua vez, entende que alguns fins justificam os meios, ou seja, mentir não é uma ação errada em si mesma, sobretudo se com isso evitarmos um mal maior.
A teoria de Stuart Mill, inspirada em Jeremy Bentham (1748-1832), tem o nome de utilitarismo e baseia-se no pressuposto de que o grande objetivo da ação humana é a felicidade. Segundo esta perspetiva, uma ação boa é aquela que gerar a maior felicidade possível para o maior número de pessoas possível. Ou, pelo menos, mais felicidade do que infelicidade. Este princípio ficou conhecido como o princípio da maior felicidade possível ou princípio da utilidade. Isto quer dizer que para um utilitarista a boa ação pode ser calculada examinando as consequências prováveis dos vários cursos possíveis de ação. O que nem sempre é fácil, como veremos de seguida.




terça-feira, 12 de março de 2013

. Ética 3: críticas à ética kantiana


A crítica mais comum vai no sentido de considerar a ética kantiana demasiado formal, sobretudo o princípio da universalizabilidade. Isto é, kant não nos ajuda muito nos momentos de decisão efetiva, apenas nos dá um enquadramento muito geral, uma maneira de pensar. Imaginem como seria, por exemplo, se tivéssemos que formular mentalmente o imperativo categórico sempre que se trata de decidir. Pois é, o mais certo é que o momento deixasse de ser oportuno e a decisão de fazer sentido. Numa palavra, a ética kantiana é vazia. Quando aquilo que precisamos, na maioria das vezes, é indicações precisas e materiais que nos orientem nas decisões. É verdade que esta crítica negligencia, isto é, ignora, a segunda formulação do imperativo categórico segundo o qual devemos tratar os outros como um fim e nunca como um meio. Uma formulação menos vaga, de facto, com algum conteúdo. Ainda assim, a ética kantiana não nos ajuda em muitas questões morais, como quando somos confrontados, por exemplo, com uma situação de conflito de deveres. Uma vez que apenas nos diz para seguir o nosso dever, como vamos agir quando somos obrigados a decidir entre dois deveres que se opõem? Imagina, por exemplo, que vives numa ditadura e um dos teus melhores amigos pertence à resistência. Imagina também que a polícia secreta, tendo descoberto a atividade do teu amigo, te faz uma visita surpresa e te pergunta onde se encontra ele. Que farias nessa situação? Contavas a verdade e condenavas o teu amigo à prisão? Ou mentias-lhes para proteger o teu amigo, arriscando a tua própria liberdade? Verdade ou amizade? Pois é, por estranho que pareça Kant não nos ajuda nestas situações, também conhecidas por dilemas éticos. Antígona, na literatura clássica, e Aristides Sousa Mendes, na realidade, são ótimos exemplos de alguém que viveu dilemas particularmente difíceis. Aproveita as férias para conhecer as respetivas histórias!
Outra crítica recorrente tem a ver com o facto de ser logicamente possível universalizar máximas que nada têm a ver com a moral -amorais- e até imorais. Por exemplo, nada me impede de universalizar a máxima "Pisca o olho sempre que te cruzares com uma pessoa do sexo oposto ao teu", mas isso nada tem a ver com a moral, é amoral. Assim como poderia universalizar consistentemente a máxima "Maltrata qualquer pessoa que te estorve". Uma crítica demasiado radical , no entanto, uma vez que ignora, mais uma vez, a segunda versão do imperativo categórico. Maltratar alguém que nos estorva dificilmente será tratar as pessoas como um fim em si mesmo.
A teoria é igualmente criticada pela importância que dá aos sentimentos. É verdade que Kant substima os sentimentos porque os sentimentos jamais garantiriam a universalidade que pretende. São eles que nos distinguem uns dos outros, ninguém sente da mesma maneira, e Kant está interessado numa moral que valha de igual modo para todos, que por isso só pode estar fundada na razão. Ainda assim, podemos considerar a sua visão excessiva. Sentimentos como a compaixão, a simpatia e o remorso dificilmente poderão ser considerados amorais, como kant sugere. Pelo contrário, há muitas pessoas que entendem que esses sentimentos, entre outros, estão na base de ações genuinamente morais.
Por último, a teoria kantiana é criticada porque não dá importância nenhuma às consequências da ação. O que significa que idiotas bem intencionados, incompetentes e outros negligentes que, involuntariamente, causem dano a outros, podem ser inocentes à luz da teoria kantiana: as consequências não foram as melhores, mas como não era essa a intenção... Se também pensas assim, se consideras que as consequências devem ser tidas em conta quando se trata de avaliar uma ação, isso significa que talvez sejas consequencialista, como Stuart Mill. Lê as publicações que se seguem e tira as tuas conclusões.

segunda-feira, 11 de março de 2013

. Ética 2: O formalismo kantiano


Segundo Kant, uma ação é verdadeiramente boa quando assenta numa intenção igualmente boa. A intenção é boa quando é pura, isto é, quando expressa uma vontade de fazer o bem pelo bem, porque esse é o nosso dever, independentemente das consequências que daí possam advir.
Fazer o bem porque isso nos põe a bem com a nossa consciência, porque alimentamos o desejo de ser recompensados por isso, ou porque simplesmente me comovo perante a desigualdade e a injustiça, ainda que boas, não são ações verdadeiramente boas. E isto por uma razão muito simples: a ação boa não deve ser motivada por razões externas, mas porque esse é o nosso dever.
Quando agimos segundo uma razão exterior, por exemplo, quando fazemos doações a instituições de solidariedade social porque teremos benefícios fiscais, ou quando dou esmola porque me comovo, estamos a ser determinados heteronomamente, isto é, por fatores externos à vontade. No primeiro caso pela ideia de recompensa, no segundo pelo sentimento de compaixão. Ainda que não estejamos perante ações más, pelo contrário, Kant não as considera verdadeiramente boas porque não são a expressão de uma vontade autónoma, mas heterónoma. Dito de outro modo: devemos agir bem porque percebemos autonomamente que esse é o nosso dever e não porque heteronomamnete somos impelidos a fazê-lo. Ou seja, para sabermos se alguém está a agir moralmente temos de saber se a sua intenção é cumprir incondicionalmente o seu dever. Não é suficiente saber, por exemplo, se o Bom Samaritano ajudou o homem que precisava de ajuda. Uma vez que o Samaritano podia ter agido em função do seu próprio interesse, para que fosse reconhecido pela sua boa ação, ou simplesmente porque se comoveu.
O que Kant quer dizer é que não podemos fazer depender a moral de factores que não controlamos, como as consequências da nossa ação, porque são imprevisíveis na sua totalidade, e os sentimentos, mesmo que bons, porque são incontroláveis por natureza. Quando agimos em função das consequências que pensamos vir a gerar, diz-se que agimos segundo um imperativo hipotético. Isto é, de acordo com um princípio condicional: " Se não queres ir para a prisão, não deves roubar". Quando, por sua vez, agimos em de acordo com os sentimentos, que variam de pessoa para pessoa, ficamos sem saber se todos agiriam do mesmo modo nas mesmas circunstâncias. O contrário, portanto, daquilo que Kant propõe: uma ação moral realizada por dever, por respeito pela lei moral independentemente das consequências e daquilo que possa, ou não, comover-nos. O mesmo é dizer segundo um imperativo categórico fundado exclusivamente na razão, de modo a poder ser universalizado.
Como já terás percebido, um imperativo, ou máxima, é o pensamento que está por detrás da acção, o princípio que a inspira. Quando não volto costas ao perigo, por exemplo, podemos afirmar que estou a agir segundo a máxima "Sê corajoso!". A diferença entre os imperativos hipotéticos e os categóricos é que os segundos se apresentam como um dever absoluto, isto é, que devemos pôr em prática independentemente das consequências e em todas as circunstâncias. Para utilizarmos o mesmo exemplo: devo ser corajoso porque é isso que eu devo fazer e não porque isso me pode trazer este ou aquele benefício. E é isto que Kant pretende para o imperativo moral, que seja categórico, que valha por si mesmo e de igual modo para todos. O mesmo é dizer, um princípio absolutamente racional.
O imperativo categórico, exatamente pelas razões expostas, é: "Age de tal modo que possas converter a máxima da tua ação numa lei universal". Como podes verificar, não é um imperativo que nos manda agir deste ou daquele modo, como acontece no cristianismo, além de que não faz depender a ação do resultado esperado. Trata-se de uma intenção pura e absolutamente fundada na razão, o que transforma a moral Kantiana numa moral formal. Isto é, em vez de nos dar indicações precisas, para esta ou aquela situação específicas, dá-nos uma fórmula, uma forma de raciocinar que devemos aplicar sempre que se trata de agir moralmente. Ficando deste modo garantido que a ação moral não depende dos sentimentos de cada um, mas de uma vontade racional. E que vontade é essa? A vontade de agir de tal modo que todos possam agir da mesma maneira em circunstâncias semelhantes. Se, por exemplo, alguém agir segundo a máxima "Sê um parasita, vive à custa das outras pessoas", não estará a agir moralmente, uma vez que a máxima não pode ser seguida por todos - se todos fôssemos parasitas não restaria ninguém para ser parasitado". Uma fórmula a que se atribui o nome de Princípio da Universalizabilidade. No fundo, uma versão formal da regra de ouro do cristianismo, também ela universalizável: "Não faças aos outros o que não desejas para ti".  Um princípio um pouco vago e abstrato, é verdade, mas talvez por isso Kant tenha enunciado uma segunda versão: "Trata os outros como fins, nunca como meios". Ou seja, devemos respeitar cada um na sua humanidade, como um fim em si mesmo, e nunca como trampolim para atingir outros objetivos. Devemos, por exemplo, respeitar os outros porque é esse o nosso dever, e não porque ao respeitar o outro vou receber em troca a sua simpatia.
Em suma, Kant é um verdadeiro iluminista. Rompe com as morais tradicionais, que se confundem com uma série de mandamentos preescritos por uma autoridade exterior, como acontece com o cristianismo, daí ser uma ética material. Para criar uma moral única e exclusivamente fundada na razão, sem receitas prévias, obrigando-nos a pensar a cada momento de determinada forma, daí ser uma ética formal, e em nome de todos. Numa palavra, universal.




domingo, 10 de março de 2013

. Ética 1: como agir corretamente?


É difícil escrever o que quer que seja após uma aula tão clara como aquela a que acabas de assistir. Ainda assim, uma vez que temos que prosseguir com as nossas, isolemos algumas ideias:
1. Ainda que a atitude distante e reflexiva do filósofo rompa com a atitude do homem vulgar, submerso nos problemas do dia a dia que convém resolver a cada momento, a Filosofia acaba por nos aproximar da vida, uma vez que é ela o verdadeiro motivo da reflexão.
2. Viver é estar obrigado a tomar decisões. É isso, aliás, que nos distingue dos animais. As leoas caçam sempre o mesmo e da mesma maneira para alimentar as suas crias, é assim, não há nada a fazer, é a sua natureza. Nós, seres humanos, podemos decidir entre caçar e não caçar. O mesmo em relação ao modo como nos alimentamos, podemos comer moderadamente ou de modo irracional, de tudo ou tornarmo-nos vegetarianos. Há até quem faça greve de fome em nome de valores que consideram fundamentais.
3. Decidir pode ser uma tarefa difícil e às vezes até pode tornar-se trágico. Sobretudo quando somos confrontados com um dilema em que ficamos sem saber como fundamentar a nossa decisão.
4. Em termos gerais há duas maneiras de fundamentar as nossas decisões, que às vezes entram em conflito. Podemos fundamentar as nossas decisões em princípios pré-estabelecidos, numa ideia de dever que inspira as nossas decisões independentemente dos seus resultados. Mas também podemos decidir em função das consequências que prevemos seguirem-se à nossa ação.
5. Às teorias que defendem que devemos agir bem independentemente das consequências da nossa ação, isto é, que agir bem é seguir aquilo que é considerado uma intenção boa, atribui-se o nome de éticas deontológicas ou intencionalistas. Àquelas que defendem que as nossas ações devem resultar de um cálculo que dá mais importâncias às consequências do que a uma qualquer noção apriori de dever, dá-se o nome de éticas consequencialistas.
6. Os melhores exemplos de uma ética deontológica ou intencionalista são o cristianismo e a moral de Kant, um filósofo que já conheces. O cristianismo porque se traduz numa série de mandamentos que os cristãos deverão pôr em prática. Kant, embora isso não se traduza numa tábua de prescrições, porque está convencido de que nós, seres humanos, devemos cumprir incondicionalmente o nosse dever, o mesmo é dizer agir segundo uma vontade boa independentemente das circunstâncias. Como é que isso se processa é o que veremos nas próximas aulas.
7. Os melhores exemplos de uma ética consequencialista são as propostas de Jeremy Bentham e Stuar Mill, ambos convencidos de que devemos avaliar cada situação em função da sua especificidade, calculando as consequências da nossa ação, independentemente de qualquer mandamento ou receita previamente traçados cujo formalismo poderá impedir-nos de agir.

quinta-feira, 7 de março de 2013

. Immanuel Kant por Fernando Savater


. Kant e a superação da oposição entre racionalismo e empirismo


Depois de compreendermos a argumento dos céticos, que negam a possibilidade de qualquer conhecimento, a proposta racionalista de Descartes e o empirismo de David Hume, que acreditavam na existência de crenças básicas capazes de sustentar o conhecimento, a pergunta "será possível conhecer?" ficaria sem uma boa parte da resposta se não fizéssemos uma referência a Immanuel Kant. 
Tal como defendiam os empiristas, defende que num primeiro momento somos sempre estimulados pelo mundo exterior, registamos sensações, a base das perceções que em Kant têm o nome de intuições sensíveis. É esse o papel da sensibilidade, registar passivamente os dados provenientes dos sentidos. Num segundo momento, agora mais próximo dos racionalistas, o entendimento entra em ação e organiza as intuições sensíveis. Levando-nos, por exemplo, a enquadrar essas intuições no espaço e no tempo, dois conceitos que detemos a priori. Daí podermos afirmar que Kant supera dialeticamente - supera sem anular - o empirismo e o racionalismo: todo o conhecimento começa na experiência mas nem todo deriva dela. O mesmo é dizer que as intuições de nada serviriam sem os conceitos que as organizam, tratar-se-ia de um registo caótico de sensações, sequenciais mas sem sentido, como acontece com os animais para quem não existe noção de futuro. Assim como de nada serviria estarmos habilitados para conhecer e ver organizadamente, se nada tivessemos para organizar, se não tivéssemos a capacidade de ser impressionados pelo mundo exterior: pensamentos sem conteúdos são vazios, intuições sem conceitos são cegas.
O melhor exemplo da superação de que falo são os juízos sintéticos a priori, uma novidade kantiana. Como sabem do estudo da Lógica, os juízos sintéticos são extensivos, o predicado acrescenta informação à que colhemos da mera análise do sujeito, a posteriori, portanto: "O Rui é alto.". Enquanto que os a priori são analíticos, o predicado não é acrescentado pela experiência, resulta da mera análise do sujeito: "O triângulo tem três ângulos.". Ou seja, opõem-se. Ora, a novidade está exatamente aqui: Kant fala de juízos sintéticos a priori. Por um lado, o predicado não está incluído no sujeito, trata-se de um conceito distinto, acrescenta informação, é extensivo. Por outro, conseguimos perceber a sua necessidade sem recorrer à experiência, a priori. É o que acontece, por exemplo, com os juízos da geometria: "A reta é a distância mais curta entre dois pontos.". A noção de "distância mais curta" não está incluída na noção de reta. No entanto, todos percebemos que o juízo é necessariamente verdadeiro sem termos que fazer a experiência de medir.
Se quiseres saber mais sobre este grande filósofo do século XVIII, o século das Luzes, podes ver o vídeo em cima. Ajudar-te-á a perceber melhor o que acabas de ler, além de que poderá ser um bom tónico para as aulas que se adivinham sobre a Moral do mesmo autor: sapere aude!


segunda-feira, 4 de março de 2013

. Racionalismo versus empirismo


. Os excessos de David Hume


Muito embora estejamos na presença de um filósofo que jamais poderá ser ignorado quando se trata de discutir o problema da origem e possibilidade do conhecimento, a verdade é que também David Hume está sujeito à crítica. A ideia de que todo o conhecimento tem origem na experiência sensível e aí termina levou-o, de facto, a ignorar algumas situações e a cometer outros excessos:
1. Ficamos sem poder explicar as alucinações percetivas. São tão ou mais intensas que as impressões, mas não cabem dentro dessa categoria, uma vez que não existe nenhum objeto que lhe corresponda.
2. Basear o princípio da causalidade no hábito do observador e na repetição dos fenómenos observados impede-nos de distinguir as leis da natureza, que não admitem exceção, e as generalizações acidentais, necessárias até prova em contrário.
3. Fica por explicar por que razão não podemos reconhecer ao conhecimento de questões de facto a mesma necessidade que reconhece ao conhecimento que resulta da relação de ideias.
4. Se o conhecimento da Matemática é tão vazio e formal como afirma, como se explica que recorramos a ela para estudar a natureza física?

. David Hume: o problema da causalidade e a indução


O empirismo de David Hume ganha a sua máxima expressão no modo como concebe o princípio da causalidade, isto é, uma ideia central para explicar o que ocorre na natureza e segundo a qual todos os fenómenos são necessariamente precedidos por uma causa em relação à qual são o efeito. Para os racionalistas, esta seria uma ideia a priori, independente e anterior à experiência. Para David Hume trata-se de um princípio a posterior e a questão deve ser colocada de outro modo. Não temos qualquer garantia racional de que observadas determinadas causas obtemos necessariamente os mesmos efeitos. Se é assim, ou melhor, se estamos convictos de que é assim, é porque a experiência constante e repetida dos fenómenos, isto é, o hábito, nos mostra que é assim: é porque observo sempre o fenómeno x precedendo o fenómeno y que concluo que x é a causa de y. Tal como fica estabelecido no texto que se segue: Hume argumentou que as inferências causais a respeito das questões de facto não são justificadas; no entanto, é para nós natural basear as nossas crenças e expectativas na experiência. O Sol sempre nasceu no horizonte, os limões sempre amargaram... Portanto, esperamos que o mundo continue sempre desta maneira. Não temos qualquer prova a priori de que o Sol, os limões... continuarão a comportar-se regularmente nesses aspetos; mas, tanto quanto é possível, estamos seguros de que tal acontecerá. (Alan Bailey e Dan O'Brien)
O mesmo para o raciocínio indutivo: não há qualquer garantia racional de que os fenómenos se repetirão ad eternum, trata-se de um raciocínio sem validade lógica. Se estamos convencidos de que amanhã o dia se sucederá à noite, não é porque se trata de uma necessidade lógica, mas porque a nossa experiência nos mostra que foi necessariamente assim. Da mesma forma que inferirmos que todos os corvos são pretos pela simples e única razão de que todos os corvos observados até hoje exibem essa cor.

. David Hume e a experiência como justificação do conhecimento


Ao contrário de Descartes, um racionalista para quem as ideias fundamentais na construção do conhecimento são inatas ou a priori, David Hume defende que todo o conhecimento se baseia na experiência, o que faz dele um empirista. Isto quer dizer que para o filósofo escocês as crenças básicas que tornam o conhecimento possível são a posteriori, isto é, são ideias construídas a partir da experiência por abstração ou indução. De seguida, veremos como isso se processa.
Antes da experiência, o ser humano, neste caso o sujeito do conhecimento, não detém qualquer conteúdo. A mente está vazia, é como uma página em branco à espera de ser preenchida. Uma tábua rasa, como disse outro empirista importante, John Locke. É na experiência, no contacto direto por intermédio dos sentidos, que o sujeito vai adquirindo informação. Ao resultado desse contacto David Hume atribui o nome de perceções, que tanto podem ser impressões simples - sensações e emoções - como ideias - representações mentais, sempre mais frágeis do que as primeiras: o mais vívido pensamento será sempre inferior à mais ténue das sensações. Ou seja, por mais complexas que sejam, as crenças substanciais têm sempre por base crenças simples acerca da nossa experiência direta - interna ou externa -. Dito de outro modo, as ideias dependem sempre das impressões, a matéria prima a apartir da qual são construídas. Se assim não fôr, isto é, se as ideias não tiverem na sua origem uma impressão correspondente, podemos afirmar tratar-se de uma ideia falsa ou um termo sem significado. É assim, por exemplo, que construímos por indução a ideia de que "Todos os corvos são pretos" - crença não básica -, porque os casos particulares de corvos observados - crença básica - parecem revelar isso mesmo. Mesmo a ideia de Deus, sem qualquer referente na experiência, obedece a este princípio: trata-se de uma ideia complexa - composta - construída a partir de ideias simples que resultam da reflexão sobre a nossa experiência interior.

A associação de ideias
Isoladas, as ideias não constituem conhecimento, são mera representação mental das impressões. Interligadas, permitem-nos construir crenças verdadeiras justificadas - David Hume prefere o termo crença ao termo conhecimento. Os princípios que regem a associação de ideias são três: semelhança, contiguidade espacio-temporal e causalidade. Por exemplo, quando afirmo que a neve é fria é porque as impressões provocadas respetivamente pela neve e pelo frio se encontram associadas. Repara que o "respetivamente" é importante, na medida em que podemos experimentar a sensação de frio na presença de outros objetos. Tal como no nosso exemplo dos corvos, em que as ideias de ave e de preto surgem associadas. Ou seja, as crenças não têm fundamento e natureza racional como defendia Descartes, são fruto de processos associativos consolidados e fortalecidos pela experiência e pelo hábito. Daí que possamos afirmar que a experiência também é critério de verdade, uma vez que é ela que nos permite distinguir ficção de realidade: posso associar as ideias de homem e cavalo e imaginar que existem centauros, mas não posso acreditar na sua existência, uma vez que o elo entre estas duas ideias não é consolidado/justificado pela experiência.

Tipos de conhecimento
Ainda assim, David Hume distingue dois tipos de conhecimento: os que exprimem simples associações de ideias e os que referem questões de facto e de existência. Os primeiros resultam da sua necessidade lógica, ou seja, são alcançáveis pelo raciocínio, não carecem de verificação empírica - não precisamos de verificálos fisicamente -. Tal como acontece, por exemplo, quando afirmamos que um triângulo tem três lados ou que 5 é metade de 10, não pode deixar de ser assim, pensar de modo contrário significaria entrar em contradição. Os segundos, tal como o nome indica, têm de ser comprovados pela experiência, de facto, uma vez que não resultam de uma necessidade lógica nem são simplesmente demonstráveis. Tal como acontece, por exemplo, se afirmar que a neve é fria.