quinta-feira, 16 de maio de 2013

. É ciência?

. A evolução da ciência segundo Karl Popper e Thomas Kuhn


Paralelamente à questão do método científico e do critério de cientificidade coloca-se a questão da evolução da ciência, isto é, a determinação das condições em que uma teoria científica é substituída por outra. Dito de outro modo: em que circunstâncias e por que razão são os modelos explicativos da realidade substituídos por outros considerados mais adequados? A astronomia de Ptolomeu, por exemplo, um modelo geocêntrico, foi substituída pela de Copérnico, um modelo heliocêntrico que contraria a perceção sensorial. Mas como se procedeu a essa mudança? E a teoria de Darwin, para dar outro exemplo, segundo a qual todas as espécies evoluiram por seleção natural a partir de um ascendente comum, quando e em que circunstâncias se impôs face às ideias que defendiam que os seres foram criados separadamente? Esta foi uma questão que ocupou Karl Popper, que já conheces, da mesma forma que ocupou Thomas Kunh, um filósofo da ciência cujas ideias estudaremos de seguida.
Em relação a Karl Popper, de acordo com o seu falsificacionismo, a ciência é objetiva e a sua evolução é racional. Isto é, o método da ciência baseia-se em conjeturas e refutações. Os cientistas partem de problemas, propõem teorias para os resolver e submetem-nas a testes empíricos que visam refutá-las. Se as teorias resistirem aos testes, continuam em vigor, isto é, continuam a ser aceites como hipóteses provavelmente verdadeiras, até que sejam refutadas. A refutação das teorias pode ser total ou parcial, foi o que aconteceu com a física de Newton, durante muito tempo bem sucedida, mas finalmente contestada em alguns dos seus aspetos centrais. Isto quer dizer que segundo Popper nunca poderemos saber se uma teoria é literalmente verdadeira, a única coisa que podemos dizer é que até determinada altura não conseguimos falsificá-la. Em termos gerais, Popper concebe a evolução da ciência como Darwin concebe a das espécies: as teorias menos aptas, isto é, as que não resistem aos testes empíricos, vão sendo eliminadas. Trata-se, portanto de um processo seletivo segundo o qual vamos descobrindo e eliminando os erros das teorias aceites numa determinada época. Algo que só será possível se adotarmos uma atitude crítica em relação às teorias científicas, de modo a não as encararmos como dogmas e nos aproximarmos progressivamente da verdade. Em relação à verdade, Popper também é muito claro. Uma teoria é verdadeira se e somente se corresponde aos factos, isto é, se descreve bem aquilo que efetivamente se passa no mundo. Numa palavra, se é objetiva. Uma meta de certo modo inalcançável. Em primeiro lugar, porque nunca poderemos confirmar definitamente as teorias, apenas podemos refutá-las. Depois, e talvez mais importante, porque cada teoria bem sucedida, ainda que resolva os problemas de que partiu, dá sempre origem a novos problemas. Daí que Popper prefira falar em graus de verosimilhança, uma vez que nunca teoria nenhuma será totalmente verdadeira, mas apenas mais próxima da verdade do que aquela que vem substituir.
Thomas Kuhn, por sua vez, insatisfeito quer com o indutivismo quer com o falsificacionismo, volta-se para o estudo da história da ciência. A noção de "paradigma" é o conceito central da sua proposta em relação à questão da racionalidade científica e da sua evolução. Um paradigma surge quando um cientista propõe uma teoria de tal modo poderosa que todos os investigadores da mesma área se colocam de acordo. Foi o que aconteceu com a Física de Aristóteles, com o Almageste de Ptolomeu e os Princípios e a Ótica de Newton, entre outros, porque solucionaram problemas que dividiam a comunidade científica ao mesmo tempo que desenvolveram um modelo de investigação a partir do qual todos os outros se posicionaram. Quando este acordo não existe, isto é, quando os investigadores de uma mesma área não estão de acordo em relação a uma teoria que sirva de base comum de investigação, tal como acontece na Sociologia, por exemplo, diz-se que os investigadores permanecem num estado de pré-ciência. Resumindo, um paradigma define e regula todo o trabalho científico numa determinada área de investigação e inclui os seguintes elementos: 
1. Leis e pressupostos teóricos fundamentais;
2. Regras para aplicar as leis à realidade;
3. Regras para usar instrumentos científicos;
4. Princípios metafísicos e filosóficos;
5. Regras metodológicas gerais.
Depois da instituição de um paradigma, inicia-se um período de ciência normal. Isto é, os cientistas trabalham à luz do paradigma aceite, sem o questionar, apenas preocupados em aprofundá-lo. Dito de outro modo, durante o período de ciência normal os cientistas, de acordo uns com os outros, não estão preocupados com grandes problemas nem questionam os pressupostos teóricos, como acontece no período da pré-ciência,  apenas se debruçam sobre problemas e enigmas específicos à luz do paradigma vigente, de modo a consolidá-lo. Quando não conseguem resolver um desses enigmas, mas que supostamente deveriam resolver, surge uma anomalia: enigma, teórico ou experimental, que não encontra solução à luz do paradigma vigente. Se a anomalia persistir, isto é, se ameaçar os fundamentos do paradigma, sobretudo se as anomalias começarem a acumular-se, gera-se uma crise: um período de insegurança evidente durante o qual a confiança num paradigma é abalada. É então que as anomalias começam a ser discutidas pela comunidade científica, instaurando-se um período de ciência extraordinária, indispensável ao surgimento de uma revolução: os fundamentos do paradigma são questionados, às vezes sem rumo, até que surge um novo paradigma rival. A substituição de paradigma, porém, é lenta, muito por culpa da resistência de alguns cientistas que persistem em negar a evidência de algumas anomalias, além de que depende do surgimento de uma nova teoria proposta por um cientista profundamente envolvido na crise. Daí que uma revolução científica corresponda à aceitação, pela comunidade científica, de um novo paradigma, absolutamente diferente e incompatível com o anterior. Quando a incompatibilidade é radical, a ponto de nos parecer que cientistas adeptos de paradigmas diferentes vêem mundos diferentes, os paradigmas revelam-se incomensuráveis, isto é, torna-se impossível compará-los objetivamente de maneira a concluir qual deles é o melhor. Como exemplo da incomensurabilidade dos paradigmas, entre outros, temos a química anterior a Lavoisier, segundo a qual existe na natureza uma substância chamada "flogisto" que explicaria a combustão, e a de Lavoisier, cujo paradigma exclui esse elemento. 

domingo, 12 de maio de 2013

. A conceção popperiana do método científico e o critério da falsificabilidade


Karl Popper é o maior crítico do método indutivo. Este filósofo entende que o método científico não tem origem na observação. A observação é importante, sem dúvida, mas deverá sempre ser precedida pela formulação de um problema que a orienta. Ou seja, num primeiro momento o cientista constata um problema - identificação de uma situação desconhecida ou contrária às teorias existentes - e formula uma hipótese. Formulada a hipótese, o cientista deduz as consequências que daí deverão resultar, para que num último momento possa constatar, ou não, as consequências deduzidas. Trata-se, portanto, de um método hipotético-dedutivo, em que a hipótese funciona como antecedente e a verificação das  consequências como consequente: se h então c. Se a hipótese for verdadeira então deverá ocorrer determinada consequência.
No que diz respeito ao teste a que a hipótese é submetida, a única inferência válida é o modus tollens, segundo o qual afirmar o consequente não permite afirmar o antecedente, mas negar o consequente implica negar o antecedente. Isto quer dizer, ao contrário daquilo que propunham os defensores do método clássico,  que as hipóteses não podem ser verificadas, apenas podem ser corroboradas ou falsificadas: se o consequente não se verificar, a hipótese é falsificada; se o consequente se verificar a hipótese não é verificada, apenas é corroborada. Popper designa este método por método das conjeturas e refutações. Ou seja, os cientistas formulam hipóteses - conjeturas - que depois vão tentar refutar, para  eliminarem os erros e progressivamente determinarem as condições em que se revelam verdadeiras. Em última análise, isto significa que o critério de cientificidade é a falsificabilidade:
1) Uma teoria é científica somente se for empiricamente falsificável;
2) Uma teroria é empriricamente falsificável se, e somente se, for incompatível com algumas observações possíveis.
Da primeira ideia devemos concluir que aquilo que interessa é a possibilidade de falsificarmos as teorias. Uma ideia estranha à primeira vista, uma vez que todos desejamos teorias verdadeiras. No entanto, Popper não diz que uma teoria tem de ser falsificada, isto é, refutada pela observação, mas falsificável, isto é, temos que determinar em que condições se tornaria falsa.
Da segunda ideia conclui-se que se uma teoria é compatível com todas as observações possíveis, isto é, se nenhuma observação permite refutá-la, então não é falsificável, logo não é científica.
Vejamos algumas proposições falsificáveis:
. "Amanhã vai chover", trata-se de uma proposição falsificável, uma vez que será refutada caso não chova no dia seguinte;
. " O lince ibérico já não existe em Portugal", é igualmente falsificável, basta que se observe um lince ou surjam vestígios da sua presença;
. "O cobre dilata quando é aquecido", também esta é falsificável, logo que se observem pedaços de cobre que não exemplifiquem a lei da dilatação;
Este último exemplo torna óbvio que o critério da falsificabilidade tem vantagens en relação ao da verificabilidade, desde logo porque não exclui as leis da natureza. Estas leis, tal como as proposições universais em geral, não podem ser verificadas, mas podem ser refutadas: a observação de muitos corvos pretos não prova que todos os corvos são pretos, enquanto que a observação de um corvo que não fosse preto bastaria para falsificar a afirmação. 
Vejamos agora algumas proposições não falsificáveis, logo não científicas:
. "Amanhã chove ou não chove";
. "O lince ibérico foi criado pelos deuse da floresta";
. "Há pedaços de cobre que não dilatam".
A primeira é uma verdade lógica básica e não pode ser refutada por nenhuma observação, as coisas são ou não são. As outras poderão ser falsas, embora não tenhamos maneira de provar a sua falsidade.

Objeções ao falsificacionismo
Embora apresente vantagens em relação ao indutivismo, a verdade é que também o falsificacionismo está sujeito a críticas. A primeira prende-se com o facto de Popper propor uma metodologia que está em desacordo com a prática habitual dos cientistas, empenhados em confirmar as suas teorias mesmo quando as previsões empíricas delas deduzidas não ocorrem. Depois, mais importante ainda, falsificar uma teoria não é uma tarefa tão fácil quanto parece. É verdade que para refutar a hipótese "Todos os cisnes são brancos" foi suficiente ter aparecido um que não correspondesse à descrição. No entanto, na ciência nem sempre se testam hipóteses isoladas. Para testar uma teoria é preciso deduzir previsões das várias leis que constituem a teoria, e se uma previsão falha apenas fica provado que uma dessas leis ou condições iniciais é falsa, não a teoria na sua totalidade.


sábado, 11 de maio de 2013

. A conceção indutivista do método científico e o critério positivista da verificabilidade


Tal como afirmávamos na publicação anterior, o objetivo da ciência é formular leis que expliquem os fenómenos a que se dedica. Em relação ao modo como isso acontece, isto é, em relação ao método científico, é comum afirmar-se que tudo começa pela observação desses mesmos fenómenos. Segundo esta perspetiva, também conhecida por método clássico, o trabalho do cientista consistiria em formular proposições universais verdadeiras a partir da observação de casos particulares que exibem relações entre si. Entre uma coisa e outra, isto é, entre a observação dos fenómenos e a elaboração da lei que os explica, está a formulação de uma hipótese - explicação provisória sujeita a confirmação - e a experimentação cuja finalidade é confirmar essa mesma hipótese. Segundo esta conceção, o critério que permite passar da hipótese à lei explicatica é o da verificabilidade, isto é, se a hipótese for verificada/confirmada por um número significativo de casos, conclui-se que ela será verificada em todos os casos pertencentes à mesma espécie. 
O critério da verificabilidade foi proposto pelos filósofos do positivismo lógico, um movimento filosófico radicalmente empirista, também conhecido por círculo de Viena, que influenciou decisivamente a filosofia da ciência durante grande parte da primeira metade do século XX. Segundo este movimento, só podemos considerar científicas as teorias empiricamente observáveis. 
Como já terás percebido, trata-se de um método indutivo, que parte do particular para o geral, tal como nos argumentos indutivos que estudámos e cujas limitações já conheces. A primeira dessas limitações consiste no risco de fazermos uma generalização abusiva, uma vez que é humanamente impossível observar todos os fenómenos a que a lei supostamente se aplica. No caso da lei da gravitação de Newton, por exemplo, seria necessário observar o comportamento de todos os corpos materiais do universo. A segunda limitação tem a ver com a natureza das previsões: uma coisa é antecipar um resultado provável com base na experiência passada, como acontece na hipótese, outra completamente diferente é afirmar que a experiência passada comprova esse resultado, como acontece na lei. Tal como verificámos, por exemplo, a propósito da proposição "Todos os cisnes são brancos", verdadeira até que foram encontrados cisnes pretos na Austrália. Enfim, um método a ter em conta, mas com precauções, como tinha dito David Hume, o grande empirista, ainda no século XVIII, e mais tarde, já no século XX, virá a dizer o grande crítico do positivismo lógico, Karl Popper. Mas de Popper, e das suas propostas, falaremos na publicação que se segue.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

. Conhecimento vulgar e conhecimento científico


O conhecimento vulgar ou senso comum, que no ano passado estudaste a propósito da sua relação com a interrogação filosófica, é o conjunto de conhecimentos básicos que herdamos passivamente e cuja finalidade é quase sempre resolver situações práticas do dia a dia. É, portanto, um conhecimento assistemático e acrítico, isto é, que nos limitamos a registar aleatoriamente e a usar sem o questionar. Dito de outro modo: o senso comum consiste num conjunto de crenças partilhadas pelos seres humanos e cuja justificação depende da experiência quotidiana transmitida ao longo das gerações. É o conhecimento, por exemplo, que nos permite saber que à noite a temperatura diminui ou que existem doenças contagiosas.
A ciência, por sua vez, apresenta-se como um corpo de conhecimentos extremamente sistematizado, organizando o que o senso comum regista de forma dispersa. Organizando e justificando, isto é, buscando explicações para os factos conhecidos. Ou seja, a ciência não só sabe que a temperatura noturna é menor, tal como o senso comum, como sabe por que razão isso acontece. Sabe que há doenças contagiosas e por que razão isso sucede. Se não sabe, busca saber, formulando aquilo a que se chama explicação ou lei científica.
Há quem defenda que entre senso comum e ciência existe continuidade, é o caso de Thomas Huxley, exatamente por aquilo que fica dito: a Ciência explica o que o senso comum regista simplesmente. É essa a teoria mais comum, a da continuidade entre ambos os saberes, uma vez que as diversas ciências correspondem em grande medida das necessidades práticas da vida humana. Por exemplo, a Astronomia veio responder à necessidade de calendários rigorosos, a Geometria à de medir terrenos e construir casas, a Biologia à de preservar a saúde...
No entanto, também há quem pense de forma diferente, quem defenda que entre ambos os saberes se dá uma rutura. Quem defende a tese da rutura fá-lo por duas razões. Em primeiro lugar porque defendem que a ciência deve afastar-se do senso comum, fonte de erro e um por isso obstáculo epistemológico, tal como afirma Bachelard na tradição platónica que distingue radicalmente opinião e conhecimento verdadeiro. Depois porque insistem na ideia de que o trabalho científico é muito específico, quer por estar centrado na objetividade, por oposição à subjetividade do senso comum, quer por seguir um método rigoroso com recurso a técnicas e instrumentos igualmente específicos. Mas sobre esse método falaremos na próxima publicação.