Identificação do problema
Imagina que conheces alguém em grande sofrimento e sem perspectivas de viver uma vida que valha a pena. Será moralmente aceitável ajudá-lo a morrer? No caso de uma pessoa muito velha ou um doente crónico, por exemplo, será moralmente aceitável desligar a máquina de apoio à vida ou administrar uma droga letal? Numa palavra, até que ponto podemos falar de morte misericordiosa? Como mostrarei de seguida, esta é uma questão que sugere respostas distintas consoante a teoria ética que adoptarmos. Antes disso, porém, é necessário estabelecer a distinção entre diferentes tipos de eutanásia:
- falamos em eutanásia voluntária quando o paciente deseja morrer e expressa o seu desejo, trata-se de uma espécie de suicídio assistido já praticado legalmente na Suiça e na Holanda;
- a eutanásia involuntária dá-se quando o paciente não deseja morrer e o seu desejo é ignorado. Em muitos casos equivale a assassínio;
- a eutanásia não voluntária corresponde à situação em que o paciente não está consciente ou em condições de exprimir o seu desejo;
Um cristão, cuja ética se baseia na ideia de dever, terá muitas dúvidas em relação à justificação moral da eutanásia voluntária, uma vez que contraria o mandamento “Não matarás!”. No entanto, poderá existir um certo conflito entre este mandamento e o do Novo Testamento que manda amar o próximo: ajudar a morrer uma pessoa que pede ajuda nesse sentido pode ser visto como uma forma de amor pelo próximo, daí chamar-se a este tipo de eutanásia “morte misericordiosa”.
Um Kantiano, isto é, alguém que considera a humanidade como um fim em si mesmo e que se recusa a tratar as pessoas como um meio, poderá viver um conflito semelhante. Por um lado, tem o dever de nunca matar, uma vez que estaria a tratar a pessoa como um meio para obter um fim, neste caso o fim do seu sofrimento. Por outro, é possível encarar a morte misericordiosa como um fim em si mesmo, se for isso que o doente quiser e precisar de ajuda.
Um utilitarista, isto é, alguém que decide em função das consequências da acção, e não em função de deveres pré-estabelecidos, pensaria de forma muito diferente. A acção correcta será aquela que causar a maior felicidade ao maior número, pelo menos mais felicidade do que infelicidade. Se se verificar que ajudando alguém a morrer, sobretudo se o prazo de vida não for longo, se termina com o seu sofrimento, além do da família, a eutanásia tem justificação: não trará felicidade, mas traz menos infelicidade.
A morte do paciente por eutanásia pode implicar a violação da lei – pense-se nos casos de Ramon Sampedro em Espanha e das mais recentes recusas nos tribunais franceses -, de forma que a pessoa que ajudar o paciente a morrer corre o risco de ser condenado. Colocando-se outra questão ética: até que ponto poderá a violação da lei ser moralmente aceite? Casos como os de Aristides Sousa Mendes, entre outros herois anónimos que não hesitaram em desafiar a autoridade para proteger seres humanos indefesos, são exemplo disso mesmo.
Outro efeito secundário da prática da eutanásia é a possibilidade de facilitar a vida aos médicos sem escrúpulos que matam pacientes fingindo que estão a cumprir o seu desejo. Ou seja, a legalização da eutanásia voluntária poderá facilitar a vida a quem quiser implantar uma política de eutanásia involuntária.
Esboço de uma reflexão crítica
A questão da eutanásia, como a maioria das questões éticas, não é fácil. É verdade que podemos socorrer-nos desta ou daquela teoria para justificar as nossas decisões. Porém, e em última análise, a decisão dependerá sempre de nós, do nosso livre arbítrio.
A questão ética poderá ser atenuada se a lei de cada país enquadrar a prática, que afinal é muito antiga e continuará a ser silenciosamente praticada. Casos como os da Suiça e da Holanda poderão constituir uma boa referência para os legisladores de todo o mundo, enquadrando o fenómeno e estabelecendo as fronteiras entre o que é um suicídio assistido, eutanásia voluntária, e um potencial homicídio, no caso de confundirmos aquela com a eutanásia involuntária.
Pelas razões anteriores, e não só, justificam-se todas as discussões em torno do problema, sendo que mais tarde ou mais cedo seremos politicamente confrontados com a questão, quem sabe com um referendo, onde seremos chamados a escolher entre a moralidade cega e o direito a uma morte com dignidade, tal como dizia Ramon Sampedro.
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