terça-feira, 7 de abril de 2020
. Filosofia da Religião 4: a existência de Deus e o problema do mal
O problema que agora se coloca é o de saber se a existência de Deus, entendido como ser justo e perfeito, é ou não conciliável com a existência de um mundo repleto de injustiças e imperfeições. Trata-se de uma estratégia comummente utilizada pelos ateus que decidem, na impossibilidade de provarem a inexistência de Deus, confrontar os crentes com aquilo que é uma evidência: a existência do mal no mundo. Seja do mal moral, isto é, aquele que os seres humanos infligem uns aos outros - assassínios, guerras, discriminação, abuso e tráfico de seres humanos... -, ou do mal natural - terramotos, tsunamis, doenças incuráveis e epidemias.... Uma estratégia que pode ser traduzida no argumento que se segue:
- Se Deus existisse, não existiria o mal.
- O mal existe.
- Logo, Deus não existe.
Como já terás percebido, estamos na presença de uma forma de inferência válida, o Modus Tollens que já conheces. Se é ou não um argumento sólido, uma vez que as premissas parecem verdadeiras, pelo menos a segunda, é o que veremos de seguida. Antes, porém, reformulemos o argumento numa versão um pouco mais extensa, de modo a referir os atributos normalmente atribuídos a Deus:
- Se Deus é omnisciente, sabe que o mal existe.
- Se é sumamente bom, deverá querer impedi-lo.
- Se é omnipotente, pode impedi-lo.
- Se Deus existisse, então não haveria mal no mundo.
- Ora, o mal existe.
- Logo, Deus não existe.
Parece que não há nada a dizer, de facto, em relação à existência do mal no mundo (2ª premissa da 1ª versão, 5ª da segunda), trata-se de uma evidência ao alcance de qualquer um. Em relação à 1ª premissa da 1ª versão, 4ª da segunda, isto é, à ideia de que a existência de Deus é incompatível com a existência do mal, a resposta já não é tão simples.
Comecemos pelo questão do mal moral, cuja responsabilidade deverá ser atribuída aos seres humanos. Segundo os crentes em geral e alguns pensadores em particular, nomeadamente Richard Swinburne, um filósofo inglês nascido já no século XX (1934), o mal moral deve ser entendido como sinal da confiança que Deus depositou na espécie humana. Segundo esta perspetiva, se estivéssemos condenados a fazer o bem, como autómatos e sem alternativa, as ações que geralmente classificamos como boas não teriam qualquer valor. Não teríamos como compará-las, de modo a distingui-las como modelos a seguir. Numa palavra, não existiriam heróis. É essa a razão pela qual Deus terá arriscado e nos concedeu o livre-arbítrio, mesmo que alguns o exerçam da pior maneira, para que estejamos cientes da fronteira entre bem e mal e, em última análise, possamos investir no nosso aperfeiçoamento moral. Concluindo e resumindo: a existência do mal no mundo, entendido como mal moral, por paradoxal que pareça, resulta da dignificação do ser humano. Um ser a quem foi dada a possibilidade de escolher e que, por isso mesmo, poderá e deverá combater os atos imorais. A existência de Deus não é, portanto, para retomarmos as premissas em análise, incompatível com o mal cuja origem deverá ser procurada exclusivamente no carácter daqueles que fazem uso indevido de uma dádiva divina: o livre-arbítrio.
Em relação ao mal natural, como os desastres ecológicos e a mais recente epidemia que tem vindo a dizimar milhares de pessoas em todo o mundo, a resposta dos teístas é semelhante. Os primeiros, sobretudo se pensarmos naqueles que são consequência do aquecimento global, talvez devessem ser seriamente entendidos como a derradeira oportunidade para repensarmos o modo como temos vindo a sobreexplorar e desperdiçar os recursos naturais de modo a adiarmos o aparentemente inevitável colapso do planeta Terra. Os outros, as doenças e epidemias sobre as quais não temos qualquer responsabilidade, por muita estranheza e contestação que gera nos ateus, a mesma coisa. Devemos resistir e encará-los como um mal necessário, sem o qual deixaríamos de investir no progresso tecnologico-científico que poderá salvar-nos de tragédias futuras. Numa palavra, como oportunidade para nos tornarmos mais capazes e mais fortes. Já agora, mais solidários também.
segunda-feira, 6 de abril de 2020
. Filosofia da Religião 3: Fideísmo ou a fém sem provas
Como tinha ficado sugerido no final da publicação anterior, há filósofos que consideram a razão e a fé processos incompatíveis. Para esses autores, a fé religiosa vai buscar a sua força, precisamente, ao facto de não haver boas razões para justificar a existência daquilo em que se acredita. Quanto mais ultrapassar as possibilidades da compreensão humana, maior a "dose" de fé que Deus inspira nos crentes - a fé começa onde a razão acaba -. Ter fé seria isso mesmo, crer naquilo que ultrapassa o poder de aceitação da razão, aceitarmos a existência de Deus assumindo a nossa incapacidade de a demonstrar - para quê ter fé em algo que existe ou se provou que existe? -. Acreditar será sempre, por isso, de acordo com Kierkegaard, um dos mais importantes fideístas, um risco vivido intimamente e uma fonte de angústia permanente. O risco e a angústia, continua esse filósofo, resultantes do facto de não ser possível provar nem o Absoluto nem o dogma paradoxal em que a sua fé cristã assenta como um edifício nos seus alicerces: Deus, o Eterno, mesmo sendo omnipotente, encarnou e assumiu a forma humana, sacrificando-se por cada um de nós. Difícil de acreditar, não é? Pois é, mas é exatamente por isso que a fé é uma experiêncial especial, única e dificilmente ao alcance de toda a gente.
Outra forma de colocar a questão da fé, menos "misteriosa" que a de Kierkegaard, foi a encontrada por Pascal, um filósofo e matemático francês contemporâneo de Descartes durante grande parte da sua vida (1623-1662). A sua proposta ficou conhecida por "aposta de Pascal" e pode ser resumida da maneira que se segue: aceitando que não há boas provas da existência de Deus, assim como não há boas provas da sua inexistência - esse é o grande problema dos ateus - o que será melhor fazer? Acreditar ou não acreditar?
Para Pascal parece não restarem dúvidas, é preferível acreditar. Senão vejamos:
1. Se Deus existir e formos crentes temos tudo a ganhar, a vida eterna, por exemplo. Ao passo que se formos crentes e Deus não existir não perdemos grande coisa, quando muito umas horas de oração e penitência em vão.
2. Se não acreditarmos e Deus realmente não existir não ganhamos nada de importante, mas temos tudo a perder se não acreditarmos e Deus afinal existir.
Logo, conclui o probabilista, o mais razoável a fazer é acreditarmos em Deus.
Aparentemente irresistível, o "argumento" de Pascal não está isento de críticas. Deixo-te algumas de seguida:
. Pascal parte do princípio que se Deus existir e não formos crentes, temos tudo a perder. Mas como sabe Pascal que isso á verdadeiro? Afinal Deus é sumamente bom, e não vingativo, pelo que não há boas razões para acreditar que irá castigar boas pessoas que não têm a sorte de acredita em Si. Assim sendo, é falso que temos tudo a perder se não acreditarmos em Deus.
. Ninguém decide acreditar em algo assim de um momento para o outro. Normalmente, as nossas crenças são causadas por outras crenças, sendo que todas dependem da nossa experiência do mundo. Se nascermos numa família de crentes, muito provavelmente vamos tornar-nos crentes à semelhança daqueles com quem sempre convivemos, ou talvez não. Da mesma forma que se nascermos numa família de ateus dificilmente viremos a colocar a hipótese de um ser divino e transcendente. Seja como for, ninguém passa a creditar em Deus de um dia para o outro sem uma razão suficientemente forte.
. Finalmente, mas não menos importante, não podemos deixar de considerar a aposta de Pascal um exercício interesseiro e conveniente para gente que não é convicatemente responsável. Uma vez que é mais razoável pensarmos que Deus prefere pessoas dignas, mesmo que não acreditem nele, a pessoas que só fazem o bem por temerem o Inferno.
domingo, 5 de abril de 2020
. Provas da existência de Deus 3: o argumento ontológico
O argumento ontológico foi proposto pela primeira vez por Santo Anselmo, um filósofo e teólogo que viveu na Idade Média (1033-1109), naquela que é a sua obra mais célebre, o Proslogion. Durante muito tempo foi conhecido por "Argumento de Anselmo", até que Kant, um filósofo que já conheces, lhe chamou ontológico. A razão prende-se com o facto, ao contrário do argumento cosmológico, que parte da existência do universo, e do teológico, que parte da ordem exibida pelo universo, de se tratar de um argumento que se basei única e exclusivamente na análise da natureza hipotética de Deus. Trata-se, portanto, ao contrário daqueles, de um argumento a priori, isto é, cujas premissas não se apoiam em qualquer informação empírica.
Em termos gerais, o argumento tenta provar que seria contraditório pensar em Deus sem admitir a sua existência. Ou seja, da mesma forma que não podemos pensar num triângulo com mais do que três ângulos sem entrar em contradição, também seria impossível pensar num ser perfeito (Deus) sem reconhecer a sua existência necessária, sem o que lhe faltaria uma das perfeições. Daí que, além de a priori, se trate de um argumento por redutio ad absurdum (por redução ao absurdo), uma vez que se tenta provar, além da existência de Deus, que seria absurdo (contraditório) supor um ser perfeito que não existe. Vejamos, agora, como se formula o argumento:
- Ou Deus existe apenas no pensamento ou, além de existir no pensamento, existe na realidade.
- Deus existe apenas no pensamento.
- Se Deus existe apenas no pensamento, então podemos conceber um ser maior do que Deus que, além de existir no pensamento, também exista na realidade.
- Podemos conceber um ser maior do que Deus que, além de existir no pensamento, também existe na realidade.
- Mas Deus é, por definição, o ser maior do que o qual nada pode ser pensado. Não podemos, portanto, conceber um ser maior do que Ele.
- É falso que Deus existe apenas no pensamento.
- Logo, além de existir no pensamento, Deus existe na realidade.
Embora seja um exercício de lógica notável e para muitos uma prova sedutora da existência de Deus, a verdade é que o argumento está longe de gerar unanimidade. De facto, as críticas ao argumento não se fizeram esperar, desde logo no século XI, por parte de Gaunilo de Marmoutier, um monge contemporâneo de Santo Anselmo. De seguida, deixo-te algumas dessas críticas e outras objeções:
A primeira grande crítica, na sequência do que aquele monge tinha dito desde logo - se o argumento ontológico fosse bom, poderíamos provar a existência do que quiséssemos -, prende-se com o facto de que não basta pensar no ser perfeito para que possamos concluir pela sua existência. Se assim fosse, bastaria pensar na ilha perfeita para que estivéssemos forçados a admitir a sua existência, uma vez que se não existisse, de acordo com a definição de perfeicão proposta por Santo Anselmo, a ilha não seria perfeita. Da mesma forma que bastaria pensar no amigo perfeito, na namorada ou namorado perfeitos... para que existissem necessariamente. A realidade, porém, mostra-nos que não é bem assim!
A segunda crítica, que no fundo é uma extensão da primeira, prende-se com o facto de Santo Anselmo ter dado um "salto ontológico" indevido. Por outras palavras, por ter confundido existência intelectual, isto é, entidades mentais, como os números, e existência física. Uma coisa é pensar em cinco maçãs, outra é, de facto, ter essas maçãs à minha frente e poder saboreá-las. Dito de outro modo, Santo Anselmo não distinguiu as propriedades que podemos reconhecer a qualquer personagem de ficção, sem qualquer contradição porque não existem fisicamente, e a propriedade da existência real. Ter poderes extraordinários e ser imortal, efetivamente, não são propriedades do mesmo género que a propriedade da existência. As primeiras, como dizemos em filosofia, são propriedades secundárias, como a cor, o odor, os sons, os gostos... A segunda é uma propriedade primária, como a extensão, o tamanho, a forma, a solidez...de onde derivam ou defluem (flow), como Locke prefere dizer, as primeiras. Ou seja, Deus teria de existir primeiro para que depois lhe pudéssemos reconhecer todas as suas perfeições - omnisciência, omnipresença, omnipotência... - e não o contrário - Deus é a coisa maior do que a qual nada pode ser pensado, logo terá de existir -.
Outra crítica resulta do facto da primeira premissa não contemplar a possibilidade de Deus não existir no pensamento, o que não significa que não exista. Isto é, a possibilidade de Deus ser de tal modo perfeito e infinito que não seria possível representá-lo mentalmente. Uma ideia que virá a ser sustentada pelos fideístas, segundo os quais fazer depender a crença em Deus da existência de boas provas e bons argumentos significa esquecer aquilo há de especial na religião: a fé. Mas do fideísmo e dos fideístas, que vivem a fé em Deus sem necessidade de qualquer prova, falaremos na próxima publicação.
sábado, 4 de abril de 2020
. Provas da existência de Deus 2: o argumento cosmológico
O argumento cosmológico procura provar a existência de Deus partindo dos dados da observação empírica, tentando responder a duas perguntas muito concretas que muito provavelmente já fizeste a ti mesmo: qual a origem do mundo, do cosmos, e por que há mundo e não o nada? É, portanto, um argumento a posteriori.
Embora se trate de um argumento com defensores desde logo na antiguidade, Platão e Aristóteles, e com várias versões já na modernidade, as de Descartes e Locke, por exemplo, a versão mais famosa é a de São Tomás de Aquino, um Doutor da Igreja que viveu entre 1225 e 1274.
São Tomás de Aquino nasceu em Itália, numa família aristocrática, estudou em Colónia, onde contacta pela primeira vez com a filosofia de Aristóteles, que viria a influenciar o seu pensamento, acabando por se tornar professor em Paris e em Roma, onde também foi conselheiro da corte papal. A sua obra capital chama-se Summa Theologica e inclui as famosas "Cinco Vias" para provar a existência de Deus. A prova que por ora nos interessa explorar, baseada na ideia de causa, encontra-se na Segunda Via e é conhecida por argumento da causa primeira. Vejamos, então, como é formulado esse argumento:
- Não há nada neste mundo que não tenha uma causa (tudo tem uma causa).
- Nenhuma coisa é causa de si mesma (causa sui).
- Tudo o que é causado é causado por outra coisa, por algo diferente de si.
- Não pode haver uma regressão infinita (ad infinitum) na cadeia das causas.
- Se não pode haver uma regressão infinita na cadeia das causas, então terá de existir uma causa primeira, incausada e que tudo causa.
- Essa causa primeira é Deus.
- Logo, Deus existe (necessariamente).
Como podes verificar, o argumento parte de uma ideia consensual, a ideia de que tudo na natureza tem uma causa. Isto é, que tudo é consequência ou efeito de uma causa anterior ou precedente. Uma premissa verdadeira, portanto, que em princípio garantirá a solidez do argumento. Ou seja, se tudo tem uma causa e essa causa, por sua vez, também terá necessariamente uma causa, terá de haver uma primeira causa para tudo. Caso contrário, tal como estudaste a propósito do argumento cético, entraríamos numa regressão infinita, isto é, numa busca incessante por uma causa original. A resposta à primeira pergunta de que partíamos - qual a origem do mundo? - está, portanto, encontrada: Deus é a origem de todas as coisas.
Ora, mas se tudo tem uma causas e nada é causa sui, de acordo com as primeiras premissas do argumento, por que razão ficaria Deus isento desta condição? Dito de outro modo, se tudo tem uma causa, não terá Deus que ter uma causa também? Se não for esse o caso, isto é, se Deus é incausado, a conclusão contradiz as premissas, pelo que o argumento deve ser considerado autocontraditório. A não ser que Deus não estivesse sujeito às leis que governam a natureza, segundo as quais tudo é efeito de uma causa. Mas se é assim, isto é, se Deus não está sujeito às leis naturais de que é a causa, como se explica que esteja na sua origem? É esse, aliás, o sentido da crítica que Kant virá a fazer ao argumento cosmológico: como explicar que uma entidade metafísica gere e determine as leis da física? Mais, agora de novo em relação ao caráter autocontraditório do argumento, por que razão devemos pensar que Deus é causa de si mesmo e não o próprio universo? Que nos impede de pensar que o universo se gerou a si mesmo num determinado momento - o Big Bang, por exemplo - ou até que existiu desde sempre? Fica a questão...
Em relação à segunda pergunta - por que existe o mundo e não o nada? - devemos procurar resposta numa segunda versão do argumento, uma versão apresentada por Leibniz (1646-1716), um filósofo alemão influenciado por Descartes e Locke, a que se dá o nome de argumento da sequência das causas e cuja formulação simplificada deixo de seguida:
- Ou a sequência de seres para no Big Bang ou continua para sempre.
- Se para no Big Bang, temos de supor que foi Deus quem o criou (o Big Bang).
- Se não para no Big Bang, temos de supor que foi Deus quem criou essa sequência infinita.
- Logo, em qualquer dos casos, Deus existe.
Uma versão, à semelhança da primeira, também ela alvo de objeções:
1ª objeção - Por que razão temos de supor, de acordo com a segunda premissa, que se a sequência de seres para no Big Bang foi Deus quem o originou? O Big Bang pode ter surgido do nada, ou talvez seja um acontecimento necessário, isto é, algo que não poderia ter deixado de acontecer. Logo, a premissa é pelo menos duvidosa.
2ª objeção - Por que razão temos de supor, de acordo com a terceira premissa, que se a sequência de seres não para no Big Bang, isto é, se é infinita, foi Deus quem a causou? Não existirão outras maneiras de a justificar? Por que não supor que a sequência é eterna e que não podia deixar de acontecer? Por que não supor que surgiu do nada? Ou seja, tal como a segunda, a terceira premissa é no mínimo duvidosa.
sexta-feira, 3 de abril de 2020
. Provas da Existência de Deus 1: o argumento teleológico ou do desígnio
O argumento teleológico, também conhecido por argumento do desígnio, foi formulado por William Paley, um filósofo e teólogo britânico ordenado padre da Igreja Anglicana em 1767, naquela que é a mais conhecida das suas obras: Teologia Natural - ou Provas da Existência e Atributos da Divindade Recolhidos em Aspetos da Natureza.
Tal como o nome da obra indica, o teólogo oitocentista baseia a sua prova na observação e explicação do funcionamento da natureza. Concluindo, depois de comparar o funcionameno interno da natureza ao de um relógio, que foi necessariamente criado por um artífice inteligente, o relojoeiro, que também na natureza nada acontece por acaso, isto é, que todos os seres vivos e a natureza em geral têm um propósito e uma finalidade conferidos pelo seu criador - Deus, o sumo artífice -. Trata-se, portanto, de um argumento não dedutivo por analogia em que se comparam duas realidades diferentes, embora semelhantes em alguns aspetos, para mostrar como são igualmente semelhantes em aspetos menos evidentes à partida. Se respeita, ou não, os critérios de um bom argumento por analogia - as semelhanças de que parte devem ser relevantes e as diferenças entre as duas realidades não deverão ser mais importantes que essas semelhanças - é o que veremos. Para já, formulemos o argumento na sua forma canónica:
Premissa 1: Os relógios exibem uma estrutura complexa e perfeita que só pode ter sido obra de um ser inteligente, o artífice.
Premissa 2: Tal como os relógios, também os seres vivos e a natureza em geral exibem uma estrutura complexa cujas partes se ajustam de modo perfeito.
Conclusão: Logo, tal como os relógios, também os seres vivos e a natureza têm de ser obra de um criador inteligente, que é Deus.
Concentremo-nos na segunda premissa, em que a analogia é estabelecida, e vejamos se se trata, então, de um bom argumento. Será a natureza realmente comparável a um relógio, isto é, para recuperarmos os requisitos formais de uma boa analogia, será que as semelhanças estabelecidas são verdadeiramente relevantes? Ou seja, para recuperarmos o segundo requisito, será que a natureza é realmente harmoniosa e bem organizada? Mais, ainda de acordo com o segundo requisito, não serão as diferenças entre um relógio e a natureza mais relevantes do que as semelhanças que podemos estabelecer entre essas duas realidades?
Em relação à primeira questão, a resposta é negativa. De facto, as semelhanças entre as duas realidades - relógio e natureza - não são verdadeiramente relevantes, pelo que não justificam a comparação. No que diz respeito aos artefactos em geral e aos relógios em particular, parece não existirem dúvidas, já vimos vários e todos exibem uma estrutura que só pode ter sido criada por um artífice. Em relação à natureza e ao universo, porém, não podemos estar seguros do mesmo, uma vez que só conhecemos uma natureza e um universo. Não podendo, portanto, concluir nada em relação à sua complexidade e perfeição.
Além disso, mais importante ainda, de acordo com a evidência científica, são processos exclusivamente naturais e a intervenção do acaso, ao longo de um lento processo de adaptação e ajustes sucessivos, que dão origem à ordem. É essa, aliás, a base da teoria evolucionista de Charles Darwin (1809-1882), segundo a qual o acaso - o cruzamento imprevisível de duas cadeias causais - é muitas vezes responsável pela ordem. O que nos leva a concluir, agora relativamente à segunda questão, que o número de diferenças entre as duas realidades - relógio e natureza - são muito mais relevantes do que as semelhanças que estão na origem do argumento. O mesmo é dizer, para falarmos das falácias que já estudaste, a analogia em que o argumento se baseia é, numa palavra, fraca.
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