domingo, 5 de abril de 2020

. Provas da existência de Deus 3: o argumento ontológico



O argumento ontológico foi proposto pela primeira vez por Santo Anselmo, um filósofo e teólogo que viveu na Idade Média (1033-1109), naquela que é a sua obra mais célebre, o Proslogion. Durante muito tempo foi conhecido por "Argumento de Anselmo", até que Kant, um filósofo que já conheces, lhe chamou ontológico. A razão prende-se com o facto, ao contrário do argumento cosmológico, que parte da existência do universo, e do teológico, que parte da ordem exibida pelo universo, de se tratar de um argumento que se basei única e exclusivamente na análise da natureza hipotética de Deus. Trata-se, portanto, ao contrário daqueles, de um argumento a priori, isto é, cujas premissas não se apoiam em qualquer informação empírica. 
Em termos gerais, o argumento tenta provar que seria contraditório pensar em Deus sem admitir a sua existência. Ou seja, da mesma forma que não podemos pensar num triângulo com mais do que três ângulos sem entrar em contradição, também seria impossível pensar num ser perfeito (Deus) sem reconhecer a sua existência necessária, sem o que lhe faltaria uma das perfeições. Daí que, além de a priori, se trate de um argumento por redutio ad absurdum (por redução ao absurdo), uma vez que se tenta provar, além da existência de Deus, que seria absurdo (contraditório) supor um ser perfeito que não existe. Vejamos, agora, como se formula o argumento:
  1. Ou Deus existe apenas no pensamento ou, além de existir no pensamento, existe na realidade.
  2. Deus existe apenas no pensamento.
  3. Se Deus existe apenas no pensamento, então podemos conceber um ser maior do que Deus que, além de existir no pensamento, também exista na realidade.
  4. Podemos conceber um ser maior do que Deus que, além de existir no pensamento, também existe na realidade.
  5. Mas Deus é, por definição, o ser maior do que o qual nada pode ser pensado. Não podemos, portanto, conceber um ser maior do que Ele.
  6. É falso que Deus existe apenas no pensamento.
  7. Logo, além de existir no pensamento, Deus existe na realidade.
Embora seja um exercício de lógica notável e para muitos uma prova sedutora da existência de Deus, a verdade é que o argumento está longe de gerar unanimidade. De facto, as críticas ao argumento não se fizeram esperar, desde logo no século XI, por parte de Gaunilo de Marmoutier, um monge contemporâneo de Santo Anselmo. De seguida, deixo-te algumas dessas críticas e outras objeções:

A primeira grande crítica, na sequência do que aquele monge tinha dito desde logo - se o argumento ontológico fosse bom, poderíamos provar a existência do que quiséssemos -, prende-se com o facto de que não basta pensar no ser perfeito para que possamos concluir pela sua existência. Se assim fosse, bastaria pensar na ilha perfeita para que estivéssemos forçados a admitir a sua existência, uma vez que se não existisse, de acordo com a definição de perfeicão proposta por Santo Anselmo, a ilha não seria perfeita. Da mesma forma que bastaria pensar no amigo perfeito, na namorada ou namorado perfeitos... para que existissem necessariamente. A realidade, porém, mostra-nos que não é bem assim!

A segunda crítica, que no fundo é uma extensão da primeira, prende-se com o facto de Santo Anselmo ter dado um "salto ontológico" indevido. Por outras palavras, por ter confundido existência intelectual, isto é, entidades mentais, como os números, e existência física. Uma coisa é pensar em cinco maçãs, outra é, de facto, ter essas maçãs à minha frente e poder saboreá-las. Dito de outro modo, Santo Anselmo não distinguiu as propriedades que podemos reconhecer a qualquer personagem de ficção, sem qualquer contradição porque não existem fisicamente, e a propriedade da existência real. Ter poderes extraordinários e ser imortal, efetivamente, não são propriedades do mesmo género que a propriedade da existência. As primeiras, como dizemos em filosofia, são propriedades secundárias, como a cor, o odor, os sons, os gostos... A segunda é uma propriedade primária, como a extensão, o tamanho, a forma, a solidez...de onde derivam ou defluem (flow), como Locke prefere dizer, as primeiras. Ou seja, Deus teria de existir primeiro para que depois lhe pudéssemos reconhecer todas as suas perfeições - omnisciência, omnipresença, omnipotência... - e não o contrário - Deus é a coisa maior do que a qual nada pode ser pensado, logo terá de existir -.

Outra crítica resulta do facto da primeira premissa não contemplar a possibilidade de Deus não existir no pensamento, o que não significa que não exista. Isto é, a possibilidade de Deus ser de tal modo perfeito e infinito que não seria possível representá-lo mentalmente. Uma ideia que virá a ser sustentada pelos fideístas, segundo os quais fazer depender a crença em Deus da existência de boas provas e bons argumentos significa esquecer aquilo há de especial na religião: a fé. Mas do fideísmo e dos fideístas, que vivem a fé em Deus sem necessidade de qualquer prova, falaremos na próxima publicação.

Nenhum comentário:

Postar um comentário