terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

. David Hume por Fernando Savater


. Os erros de Descartes


Embora seja uma referência fundamental da história da filosofia e unanimemente considerado o pai da filosofia moderna, a verdade é que Descartes não está isento de críticas. E isto a diversos níveis:

1. Crítica ao argumento da ilusão
Apesar de os sentidos serem falíveis e podermos cometer erros no que respeita à visão de objetos à distância, existem observações das quais não podemos duvidar seriamente. Quer isto dizer que existem graus de certeza, e não podemos considerar todas as observações da mesma maneira. Por exemplo, dificilmente poderei duvidar que estou sentado neste momento a escrever este texto. Assim como não poderei duvidar seriamente que estou em Portugal, e não na Patagónia. Dito de outro modo: só posso considerar ilusórias algumas situações - duas retas paralelas que afunilam à medida que me afasto delas, por exemplo - porque há outras das quais não duvido e que servem de referência para classificar as primeiras. Da mesma forma que só sei qual é o avesso de um casaco porque sei qual é a frente, e o desvio em relação à norma.

2. Distinção entre sonho e realidade
A hipótese de que poderei estar sempre a sonhar é igualmente muito discutível. Não faz sentido dizer que toda a minha vida é um sonho. Se eu estivesse sempre a sonhar não teria qualquer noção de sonho. Tal como dizia em cima em relação à frente e avesso do casaco, só sei o que é sonhar porque sei o que é estar a cordado. Repara, no entanto, que esta crítica não destrói a posição dos céticos: o cético não afirma que podemos estar sempre a sonhar, mas que em momento nenhum podemos ter a certeza se estamos ou não a sonhar.
Outra das várias críticas à hipótese de que estaríamos sempre a sonhar foi feita por Norman Malcom. Este filósofo contemporâneo defendeu que se estívéssemos sempre a sonhar não poderíamos fazer a pergunta "será que estou a sonhar?", uma vez que fazer perguntas implica estar consciente, o que não acontece quando estamos a dormir. Uma crítica também ela criticável, uma vez que reflete uma nocão de sonho demasiado simplista. Sabe-se, por exemplo, que diferentes pessoas experimentam diferentes níveis de consciência enquanto dormem. Algumas têm o que é conhecido por "sonhos lúcidos" - sabemos que estamos a sonhar e continuamos a sonhar -, pelo que é possível estar consciente, pelo menos em parte, ao mesmo tempo que dormimos.

3. Crítica ao cogito
Alguns filósofos entendem que Descartes errou ao usar a expressão "eu penso". Se tivesse sido consistente com a sua abordagem cética inicial, deveria ter dito "Há pensamentos". Descartes está a pressupor que para haver pensamentos tem que haver alguém particular que pensa. Talvez porque é assim que a nossa linguagem está estruturada, levando-nos a crer que todo o pensamento precisa de um pensador. Mas podemos duvidar disso - o "eu" da expressão pode ser como o "ele" quando dizemos "Ele ainda vem chuva", que não refere nada -, sobretudo porque a hipótese do génio maligno ainda não foi excluída no momento em que formula a sua inferência célebre: Cogito, ergo sum.

4. O círculo cartesiano
Como vimos, sem Deus dificilmente se poderia construir algo sobre a base do cogito. É o próprio Descartes quem o afirma: só Deus pode garantir que não se engana quando pensa clara e distintamente. Por outro lado, também é ele quem o afirma, Deus existe porque concebe clara e distintamente a sua existência - tal como havia acontecido em relação ao cogito, trata-se de uma verdade evidente que não pode evitar -. Acontece, porém, que isto é uma falácia. Trata-se de raciocinar em círculo e a falácia é a falácia da circularidade: para saber que as ideias claras e distintas são verdadeiras tenho de saber primeiro que Deus existe, mas para saber que Deus existe tenho de ter primeiro a ideia clara e disitnta da sua existência.

5. A prova da existência de Deus
A prova da existência de Deus também é alvo de críticas, e isto por duas razões. Por um lado, uma vez que a hipótese do génio maligno ainda não foi excluída, Descartes não tem qualquer garantia de que a ideia de perfeição implica a existência de um ser perfeito. A convicção de que a ideia de ser perfeito só pode ter origem no próprio ser perfeito, uma vez que ele é imperfeito, pode não passar de mais um resultado da manipulação da sua mente pelo génio maligno. Por outro, não há boas razões para pensar que a ideia de ser perfeito tem de ser causada por um ser perfeito que existiria necessariamente. Afinal, eu posso ter a ideia de estudante perfeito e de ilha perfeita, mas daí não se segue que um e outra existam efetivamente.

Conclusão
Parece, pois, que Descartes não conseguiu provar satisfatoriamente a existência de Deus. Se não conseguiu provar satisfatoriamente a existência de Deus, então o cogito não é garantia de um conhecimento absoluto. Para alguns filósofos, isso é mais do que suficiente para mostrar que Descartes não resolveu o problema da possibilidade do conhecimento e que o argumento dos céticos persiste. Ou seja, é necessário encontrar outros fundamentos para o conhecimento, outro tipo de crenças básicas. É isso que farão os outros fundacionistas, os empiristas, entre os quais se encontra o filósofo que estudaremos de seguida: David Hume.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

. Descartes: em busca da primeira certeza


Como poderás verificar pela leitura do texto na publicação anterior, um texto muito parecido com o que poderás encontrar no teu manual (pág. 140-141) retirado do Discurso do Método, a obra mais conhecida de Descartes, o filósofo françês defende que o cogito, isto é, o pensamento, é a primeira verdade que se revela ao espírito como absolutamente verdadeira. Ou seja, o cogito é de tal modo evidente - não posso deixar de acreditar que existo enquanto penso - que pode assumir-se como axioma a partir do qual poderei extrair outras verdades. O fundamento ou a crença básica de que falávamos, e que por isso será a base de todo o edifício do conhecimento. O que é que isso significa e como é que Descartes chegou a essa evidência, é o que veremos de seguida.
Descartes começa por duvidar de tudo quanto podemos colocar em dúvida. E tudo significa mesmo tudo. A existência do mundo exterior, a distinção entre sonho e vigília, o próprio raciocínio. Fá-lo, no entanto, ao contrário dos céticos, não para provar que o conhecimento não é possível, mas para encontrar algo que resista à dúvida e assim possa ser uma base segura a partir da qual possa inferir outras verdades. Trata-se, por isso, de uma dúvida provisória - até que algo se revele indubitável - e metódica, uma vez que se confunde com o próprio método de busca pela verdade.
Em relação à existência do mundo exterior, o argumento é o seguinte: se os sentidos nos enganam às vezes, podem enganar-nos sempre. Quem é que nunca teve uma ilusão ótica? Já andaste na última carruagem do comboio? Pois é, se acreditarmos naquilo que vemos, ou que parece vermos, vamos acreditar que as linhas afunilam à medida que nos afastamos. E o calor no verão? Nunca viste o calor a emergir do alcatrão quente? Será que viste? E não vemos o sol a pôr-se? Mas não é o sol que se põe, correto? Logo não devemos confiar naquilo que vemos, ouvimos, cheiramos... Um argumento um pouco exagerado, é verdade, mas não te esqueças que Descartes tem mesmo que exagerar nesta fase do percurso, trata-se de encontrar um fundamento absolutamente indubitável.
Em relação à distinção entre sonho e vigília, também um pouco exagerado, o argumento é igualmente simples. Uma vez que quando sonhamos tudo nos parece real, sobretudo porque quando sonhamos não podemos sair do sonho e verificar que estamos a sonhar, devemos colocar a hipótese de que tudo não passa de um sonho.
O mesmo para o raciocínio. Se mesmo os mais habilitados se enganam por vezes, além dos erros que cometemos sem nos apercebermos deles (os paralogismos), então não podemos confiar no raciocínio.
Como se isto não bastasse, Descartes chega mesmo a colocar a hipótese de um génio maligno que estaria empenhado em enganar-nos a cada momento. Uma hipótese altamente rebuscada que, ainda assim, veio a ser recolocada já no século vinte sob o nome de cérebro numa cuba: e se eu não passasse um cérebro numa cuba de produtos químicos, ligado a uma série de fios por intermédio dos quais um cientista perverso cria em mim a ilusão da experiência sensorial? Do nosso ponto de vista, podemos levantar-nos e ir ao cinema ou assistir a um concerto. O que estaria a contecer, no entanto, é que o cientista estaria a estimular certos nervos de modo a criar a ilusão de que isso estaria a acontecer na realidade.
Numa palavra, Descarte faz uma epoché. Isto é, suspende o juízo e considera falso tudo quanto se revele minimamente duvidoso.
Levados a este extremo, ao contrário do que se poderia esperar e para desagrado dos céticos, Descartes descobre uma primeira verdade da qual não pode duvidar. Ao duvidar de tudo e ao colocar tudo em suspenso, percebe que não pode deixar de existir enquanto faz isso mesmo: duvidar. Duvida, logo existe enquanto ser que duvida. Repara que a existência de que estamos a falar é uma existência intelectual, o pensamento do ser que duvida enquanto duvida, separado do corpo. Em relação a esse, ao corpo, como em relação a todo o mundo exterior de que o corpo faz parta, Descartes ainda não tem razões para deixar de duvidar.
O cogito ou pensamento é, portanto, a primeira verdade que resiste ao poder corrosivo da dúvida, goza de imunidade, uma vez que não podemos duvidar de que estamos a duvidar, sob o risco de cairmos em contradição. Trata-se de uma impossibilidade lógica. Para duvidar, tenho que pensar. E para pensar, tenho que existir enquanto ser pensante. Trata-se, pois de uma evidência, algo a que Descartes não pode fugir. Não se descobre por raciocínio, não se infere de coisa alguma, é uma intuição racional que resulta da mera inspeção do espírito. Como Descartes também diz, uma ideia clara e distinta. Clara, porque não posso deixar de constatá-la, é evidente. Distinta, porque não se confunde com nenhuma outra.
A importância desta descoberta é dupla. Por um lado, Descartes define o fundamento que procurava, o alicerce que lhe faltava e a partir do qual pode extrarir ouras verdades. Por outro, ganha um critério de verdade - a clareza e disitinção -, uma vez que tudo o que se apresentar ao espírito da mesma forma, isto é, como ideia clara e distinta, deverá ser considerado verdadeiro.
No grupo das ideias claras e distintas estão, por exemplo, os princípios básicos da matemática e a ideia de Deus. Ideias inatas, das quais nos apercebemos sem ter que recorrer à experiência. Ao contrário das ideias adventícias e factícias, respetivamente fundadas nos sentidos e na imaginação, falíveis e geradores de dúvida.
A ideia de Deus, ou de ser perfeito, é particularmente importante, uma vez que é ela que permitirá abandonar o solipsismo - teoria que defende que só podemos ter certeza acerca de nós mesmos - em que Descartes acaba por cair. Não te esqueças que por ora Descartes só tem a certeza acerca de si mesmo enquanto ser pensante: um ser que pensa e tem ideias claras e distintas em si que não foi buscar senão a si mesmo. Com a existência de Deus garantida, que por definição não engana - Deus é sumamente bom -, e na posse de um critério de verdade - a clareza e distinção -, Descartes pode partir para a descoberta do mundo exterior e considerar verdadeiro tudo o que se revelar evidente. Como prova Descartes a existência de Deus? Mais ou menos assim:
1. Tenho a ideia de ser perfeito em mim, que só pode ter vindo dele, uma vez que eu sou imperfeito (duvido);
2. Se é perfeito tem que ter todas as propriedades/qualidades, caso contrário não seria perfeito;
3. Ora, a existência é uma propriedade/qualidade;
4. Logo, Deus existe, caso contrário faltar-lhe ia uma propriedade.
Para saberes se se trata, ou não, de um bom argumento, terás que ler a próxima publicação.

. Cogito ergo sum

Enquanto desta maneira rejeitamos tudo aquilo de que podemos duvidar, e que simulamos mesmo ser falso, supomos, facilmente, que não há Deus, nem céu, nem terra, e que não temos corpo. Mas não poderíamos igualmente supor que não existimos, enquanto duvidamos da verdade de todas estas coisas: porque, com efeito, temos tanta repugnância em conceber que aquele que pensa não existe verdadeiramente ao mesmo tempo que pensa que, apesar das mais extravagantes suposições, não poderíamos impedir-nos de acreditar que esta inferência EU PENSO, LOGO EXISTO, não seja verdadeira e, por conseguinte, a primeira e a mais certa que se apresenta àquele que conduz os seus pensamentos por ordem
(Descartes, Princípios da Filosofia, artigo 7)



. Possibilidade e origem do conhecimento


Em relação à questão da possibilidade do conhecimento devem registar-se duas respostas gerais, uma positiva e outra negativa. Aos que respondem afirmativamente, isto é, os que defendem que o conhecimento é possível, atribui-se o nome de dogmáticos e à sua posição dogmatismo. Aos que estão convencidos de que o conhecimento não é possível, isto é, que temos boas razões para duvidarmos da nossa capacidade de conhecer, atribui-se o nome de céticos.
A posição cética, ou ceticismo, embora radical, assenta na ideia de que não é possível conhecer porque as nossas justificações requerem sempre outras justificações em que possam basear-se, ad infinitum. Ou seja, os céticos defendem que as nossas justificações, sem o que não há conhecimento, remetem sempre para outras justificações anteriores, sendo que não há uma primeira que possa fundamentar verdadeiramente todas as outras. Trata-se do argumento da regressão infinita e pode ser enunciado da seguinte forma:
1. Se há conhecimento então há crenças justificadas
2. Não há crenças justificadas
3. Logo, não há conhecimento
Trata-se do Modus Tollens que já conheces, mas agora aplicado à questão da possibilidade do conhecimento. Claro que o argumento sofreu refutação, e os filósofos que o fizeram chamam-se fundacionistas. Porquê? É simples, porque estes filósofos, ao contrário dos céticos, estão convencidos que é possível encontrar um primeiro fundamento para as nossas justificações, uma espécie de crença básica, isto é, verdades auto-evidentes que não carecem de justificação anterior e que desse modo podem assegurar uma base segura para os nossos raciocínios. Dito de outro modo: os fundacionistas defendem que o argumento da regressão infinita tem uma premissas falsa - "Toda a justificação se infere de outras crenças" -. Ou seja, os fundacionistas defendem que é necesssário distinguir dois tipos de crença, as básicas e as não básicas. As básicas são uma evidência da razão, autojustificam-se e não são inferenciais (não resultam de uma inferência), resistem à corrosão da dúvida e podem por isso ser fundamentos epistémicos, verdadeiros axiomas a partir dos quais podemos raciocinar validamente. Além das não básicas, ou inferenciais, que resultam de uma inferência e são por isso justificadas por outras crenças.
Dentro do grupo dos fundacionistas, vamos encontrar Descartes e David Hume, os filósofos que estudaremos de seguida e cujas diferenças são em maior número do que as semelhanças. Como veremos, embora ambos defendam que o conhecimento é possível, isto é, que é possível determinar crenças básicas, já o mesmo não podemos dizer em relação à origem desses fundamentos. O primeiro, que a determinada altura recorre ao ceticismo, situa esses fundamentos na razão - a priori -, as ideias inatas de que falaremos, e a sua posição é conhecida por racionalismo ou fundacionismo cartesiano. O segundo defende que esses fundamentos provêm da experiência sensível - a posteriori - e a sua posição, por isso mesmo, é conhecida por empirismo ou fundacionismo clássico.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

. Conhecimento como crença verdadeira justificada (II)


A definição de conhecimento como crença verdadeira justificada foi aceite sem qualquer constestação durante mais de dois mil anos - não te esqueças que já Platão se referia ao conhecimento desse modo -. Hoje, continua a ser aceite, mas com alguns cuidados, sobretudo no que respeita à justificação que damos para os conhecimentos que afirmamos possuir. Isto porque em 1963 um filósofo americano, Edmund Gettier, forneceu alguns contra-exemplos - exemplos que contrariam a definição - que mostram que podemos ter uma crença verdadeira justificada sem que essa crença seja conhecimento. Tal como o que se segue:
Imagina que o Pedro vai à praia onde também se encontra a Mafalda. Imagina também que o Pedro não levou toalha porque está convencido que a Mafalda tem uma a mais na mochila e lha pode emprestar. O Pedro tem, portanto, uma crença. Que neste caso está justificada, uma vez que a Mafalda lhe tinha dito que levaria uma toalha a mais porque a Rita também lhe tinha pedido. Até aqui tudo bem. Agora imagina o seguinte: sem que o Pedro soubesse, a Rita mudou de ideias e telefonou à Mafalda a dizer que não ia, mas que a toalha continuaria a ser necessária, uma vez que o Manuel também ia e ele é um cabeça no ar. Como o Manuel é distraído e a Mafalda é boa companheira, esta leva a toalha a contar com ele. Ou seja, a Mafalda tinha uma toalha a mais, efetivamente, não por causa da Rita como o Pedro pensava, mas por causa do Manuel. Isto quer dizer que o Pedro tem uma crença verdadeira justificada. Logo, segundo a definição tradicional de conhecimento, o Pedro sabe disso. Mas será que sabe tal coisa? A resposta é não, uma vez que aquilo que justifica a crença do Pedro não é a razão pela qual a Mafalda levou a toalha extra. Ou seja, a crença do Pedro revelou-se verdadeira por acidente, por mera sorte. Conclusão: a crença verdadeira justificada não é suficiente para o conhecimento.
Atenção: como muitos outros filósofos disseram, os contra-exemplos de Gettier não serão suficientes para pôr em causa a definição tradicional de conhecimento, mas uma boa ocasião para fortalecer a noção de justificação requerida pela definição. Ou seja, para voltarmos ao exemplo, será que justificar uma crença porque alguém nos disse que é assim e não de outro modo, constitui uma boa justificação? E se a nossa fonte for um mentiroso compulsivo? Bom....agora é a tua vez de "puxar" pela cabela e engendrares os teus próprios contra-exemplos.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

. Conhecimento como crença verdadeira justificada (I)


Perguntar "o que é?" significa definir aquilo sobre o que fazemos a pergunta. Definir, por sua vez, significa isolar as propriedades comuns, e só essas, a todos os exemplares daquilo que queremos definir. Por exemplo: se quisermos definir o "quadrado", não devemos referir as características físicas deste ou daquele quadrado - a cor, o tamanho, o material de que é feito...-, uma vez que variarão de caso para caso, mas aquilo que é comum a todos os quadrados, os que existem e os que poderão vir a existir. Ou seja, devemos dizer que um quadrado é uma figura geométrica com quatro lados iguais cujas diagonais se cruzam rigorosamente ao centro, algo que verificaremos sempre na presença de um quadrado independentemente das diferenças físicas. Numa palavra, devo isolar as invariáveis.
Em Filosofia, as invariáveis, ou propriedades comuns a todos os casos particulares daquilo que queremos definir, chamam-se propriedades/condições necessárias e suficientes. Necessárias, porque temos que referi-las para saber de que estamos a falar, isto é, não pode deixar de ser assim. Suficientes, porque basta referir essas propriedades para identificar a realidade em questão, isto é, não é preciso mais nada senão isso mesmo.
Perguntemos agora "o que é o conhecimento?" e vejamos quais são as condições necessárias e suficientes para podermos afirmar que conhecemos.

Conhecimento e crença
A primeira condição para que possamos falar em conhecimento é a existência de uma crença. Isto é, conhecer implica acreditar naquilo que afirmamos conhecer, sob o risco de cairmos em contradição. Repara, no entanto, que crença não significa fé, no sentido de crença religiosa, mas convicção. Ora, isto quer dizer que acreditar - a crença - é uma condição necessária para podermos falar em conhecimento. Como, por exemplo, viver em Portugal é uma condição necessária para viver em Lisboa, porque todas as pessoas que vivem em Lisboa vivem em Portugal. Mas será que podemos afirmar que a existência de uma crença é uma condição suficiente para haver conhecimento? Da mesma forma que viver em Portugal é condição suficiente para viver na Europa? A resposta é não. Uma vez que eu posso acreditar em falsidades. Ou seja, para conhecer tenho que acreditar, mas não basta acreditar para saber. Dito de outro modo, a crença é uma condição necessária do conhecimento, mas não é suficiente.

Conhecimento e verdade
Nenhuma crença falsa é conhecimento. Não basta pensar que a Rita está na escola para que a proposição "A Rita está na escola" seja verdadeira. É necessário que a Rita esteja lá efectivamente e que isso possa ser constatado, isto é, que possa ser verificado. Isto quer dizer que o conhecimento é factivo, não podemos conhecer falsidades (ainda que possamos acreditar nelas). Sem verdade, portanto, não há conhecimento, e o critério de verdade é a factividade. Repara, no entanto, que afirmar que não podemos conhecer falsidades não significa que não possamos identificá-las. Afirmar "A Inês sabe que é falso que Lisboa é a capital do Brasil" é muito diferente de afirmar "A Inês sabe que Lisboa é a capital do Brasil". Ou seja, a verdade é uma condição necessária do conhecimento. Isto é, a crença tem de ser verdadeira - no tempo de Ptolomeu, as pessoas pensavam que a Terra estava imóvel no centro do universo, mas não sabiam tal coisa, pois não podiam... -. Mas será isso suficiente? A resposta, mais uma vez, é negativa. A verdade é uma condição necessária do conhecimento, mas não é uma condição suficiente. Quando a professora de Matemática pergunta ao Tomás "qual a raiz quadrada de quatro ?" e este lhe responde "dois", porque acha ou está convencido que é dois, o Tomás não revela conhecimento. Do facto de o "feeling" do Tomás se ter revelado certeiro não se segue que ele sabia a resposta. Crenças que se revelam verdadeiras por acaso não são conhecimento, é necessário que consigamos justificá-las.

Crença e justificação
Platão foi o primeiro a distinguir a crença do conhecimento, num diálogo chamado Teeteto, àcerca do conhecimento científico, que segundo o filósofo tanto se distingue da mera opinião como daquilo que chama opinião verdadeira. Ou seja, além de ser verdadeira, a crença deve ser justificada, ser acompanhada por um logos, sem o que não podemos falar em conhecimento. Mas o que significa isso? Em que consiste justificar uma crença verdadeira? Vejamos a o seguinte exemplo:
O Pedro acredita que vai passar de ano e a sua crença torna-se verdadeira. O pedro passa efectivamente de ano. Mas isso não significa que o Pedro sabia que ia passar de ano. Se à sua crença verdadeira juntarmos uma série de razões que o levaram a acreditar nisso - porque estudou, porque se interessa e coloca dúvidas, porque tem boas notas nos testes... -, aí sim, podemos falar de conhecimento.
Por outras palavras, e para recuperarmos a nossa estratégia inicial, a justificação é uma condição necessária para o conhecimento. Mas será isso suficiente? Basta justificarmos as nossas crenças para que constituam conhecimento? É a justificação uma condição suficiente? Aqui a resposta é igualmente negativa. Ptolomeu tinha uma boa justificação para acreditar que a Terra estava parada no centro do universo, mas não sabia (porque não podia...) que a Terra estava parada no centro do universo. Existem diferentes estados cognitivos, estejamos a falar de pessoas - as justificações das crianças são diferentes das justificações de um adulto letrado... - ou de civilizações - no estado cognitivo em que se encontrava Ptolomeu havia boas razões para acreditar na teoria geocêntrica -, mas os estados cognitivos não são perfeitos. As pessoas podem ter justificações para acreditar em falsidades. Os europeus, por exemplo, antes de saberem da existência da Austrália, tinham uma boa justificação para acreditar que todos os cisnes seriam brancos. Até lá terem ido e visto cisnes pretos. Logo, podemos ter crenças justificadas sem ter conhecimento. Melhor: a crença justificada não é uma condição suficiente para o conhecimento.
Em relação à justificação propriamente dita devemos assinalar três modalidades:
1) Justificação por correspondência. Trata-se da posição de Aristóteles, para quem uma crença é verdadeira quando existe uma adequação entre o que dizemos, as nossas proposições, e a realidade a que o nosso discurso se refere. É um critério de fácil aplicação, sobretudo se estivermos a falar de realidades empíricas, isto é, verificáveis através da experiência. Ex: a proposição "A neve é branca" é verdadeira porque posso verificá-lo empiricamente, posso pegar num pedaço de neve e constatá-lo.
2) Justificação por coerência. Trata-se de um critério utilizado quando não podemos verificar diretamente a verdade de uma proposição. Neste caso, parte-se de determinadas evidências que, conjugadas com outras evidências, permitem extrair uma conclusão que oferece alguma segurança. Trata-se de um raciocínio dedutivo, válido logicamente, aquele que já estudaste e te permite extrair conclusões verdadeiras a partir de premissas igualmente verdadeiras. É assim, por exemplo, que a ciência evolui. Extraindo conclusões a partir de verdades entretanto estabelecidas, umas também pelo método da coerência, outras pelo da correspondência, como quase sempre acontece nas premissas. Como é assim, para dar outro exemplo, que funcionam os investigadores criminais: embora ninguém tivesse visto a Madalena a dar a estocada final no Frederico, os vizinhos ouviram-nos a gritar momentos antes, assim como viram a Madalena abandonando a casa à pressa e aparentemente desorientada, além de que não havia vestígios da presença de outras pessoas no interior da casa...logo, a Madalena é responsável pelo crime ali ocorrido.
3) Justificação pela prática. Neste caso a verdade de uma proposição é estabelecida pelos resultados que a sua aceitação permite obter, isto é, em função das consequências. É um critério usado, não para testar factos, mas hipóteses. Por exemplo: se verificarmos que os jovens são mais produtivos quando submetidos a situações de disciplina rigorosa, sobretudo mais responsáveis, então devemos poder concluir que "a disciplina conduz à produtividade e à responsabilidade".

Conclusão:
Isoladas, as três condições, são necessárias, mas não são suficientes. Juntas, no entanto, permitem obter a definição de conhecimento que procurávamos. Mas só nesse caso, isto é, só e somente se estiverem reunidas as três condições. Daí que possamos terminar afirmando que S sabe ou conhece P se e somente se S acredita que P, P é verdadeira e há uma justificação para S acreditar que P. Se esta é, ou não, uma boa definição, é o que veremos de seguida.