terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

. Os erros de Descartes


Embora seja uma referência fundamental da história da filosofia e unanimemente considerado o pai da filosofia moderna, a verdade é que Descartes não está isento de críticas. E isto a diversos níveis:

1. Crítica ao argumento da ilusão
Apesar de os sentidos serem falíveis e podermos cometer erros no que respeita à visão de objetos à distância, existem observações das quais não podemos duvidar seriamente. Quer isto dizer que existem graus de certeza, e não podemos considerar todas as observações da mesma maneira. Por exemplo, dificilmente poderei duvidar que estou sentado neste momento a escrever este texto. Assim como não poderei duvidar seriamente que estou em Portugal, e não na Patagónia. Dito de outro modo: só posso considerar ilusórias algumas situações - duas retas paralelas que afunilam à medida que me afasto delas, por exemplo - porque há outras das quais não duvido e que servem de referência para classificar as primeiras. Da mesma forma que só sei qual é o avesso de um casaco porque sei qual é a frente, e o desvio em relação à norma.

2. Distinção entre sonho e realidade
A hipótese de que poderei estar sempre a sonhar é igualmente muito discutível. Não faz sentido dizer que toda a minha vida é um sonho. Se eu estivesse sempre a sonhar não teria qualquer noção de sonho. Tal como dizia em cima em relação à frente e avesso do casaco, só sei o que é sonhar porque sei o que é estar a cordado. Repara, no entanto, que esta crítica não destrói a posição dos céticos: o cético não afirma que podemos estar sempre a sonhar, mas que em momento nenhum podemos ter a certeza se estamos ou não a sonhar.
Outra das várias críticas à hipótese de que estaríamos sempre a sonhar foi feita por Norman Malcom. Este filósofo contemporâneo defendeu que se estívéssemos sempre a sonhar não poderíamos fazer a pergunta "será que estou a sonhar?", uma vez que fazer perguntas implica estar consciente, o que não acontece quando estamos a dormir. Uma crítica também ela criticável, uma vez que reflete uma nocão de sonho demasiado simplista. Sabe-se, por exemplo, que diferentes pessoas experimentam diferentes níveis de consciência enquanto dormem. Algumas têm o que é conhecido por "sonhos lúcidos" - sabemos que estamos a sonhar e continuamos a sonhar -, pelo que é possível estar consciente, pelo menos em parte, ao mesmo tempo que dormimos.

3. Crítica ao cogito
Alguns filósofos entendem que Descartes errou ao usar a expressão "eu penso". Se tivesse sido consistente com a sua abordagem cética inicial, deveria ter dito "Há pensamentos". Descartes está a pressupor que para haver pensamentos tem que haver alguém particular que pensa. Talvez porque é assim que a nossa linguagem está estruturada, levando-nos a crer que todo o pensamento precisa de um pensador. Mas podemos duvidar disso - o "eu" da expressão pode ser como o "ele" quando dizemos "Ele ainda vem chuva", que não refere nada -, sobretudo porque a hipótese do génio maligno ainda não foi excluída no momento em que formula a sua inferência célebre: Cogito, ergo sum.

4. O círculo cartesiano
Como vimos, sem Deus dificilmente se poderia construir algo sobre a base do cogito. É o próprio Descartes quem o afirma: só Deus pode garantir que não se engana quando pensa clara e distintamente. Por outro lado, também é ele quem o afirma, Deus existe porque concebe clara e distintamente a sua existência - tal como havia acontecido em relação ao cogito, trata-se de uma verdade evidente que não pode evitar -. Acontece, porém, que isto é uma falácia. Trata-se de raciocinar em círculo e a falácia é a falácia da circularidade: para saber que as ideias claras e distintas são verdadeiras tenho de saber primeiro que Deus existe, mas para saber que Deus existe tenho de ter primeiro a ideia clara e disitnta da sua existência.

5. A prova da existência de Deus
A prova da existência de Deus também é alvo de críticas, e isto por duas razões. Por um lado, uma vez que a hipótese do génio maligno ainda não foi excluída, Descartes não tem qualquer garantia de que a ideia de perfeição implica a existência de um ser perfeito. A convicção de que a ideia de ser perfeito só pode ter origem no próprio ser perfeito, uma vez que ele é imperfeito, pode não passar de mais um resultado da manipulação da sua mente pelo génio maligno. Por outro, não há boas razões para pensar que a ideia de ser perfeito tem de ser causada por um ser perfeito que existiria necessariamente. Afinal, eu posso ter a ideia de estudante perfeito e de ilha perfeita, mas daí não se segue que um e outra existam efetivamente.

Conclusão
Parece, pois, que Descartes não conseguiu provar satisfatoriamente a existência de Deus. Se não conseguiu provar satisfatoriamente a existência de Deus, então o cogito não é garantia de um conhecimento absoluto. Para alguns filósofos, isso é mais do que suficiente para mostrar que Descartes não resolveu o problema da possibilidade do conhecimento e que o argumento dos céticos persiste. Ou seja, é necessário encontrar outros fundamentos para o conhecimento, outro tipo de crenças básicas. É isso que farão os outros fundacionistas, os empiristas, entre os quais se encontra o filósofo que estudaremos de seguida: David Hume.

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