quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

. Descartes: em busca da primeira certeza


Como poderás verificar pela leitura do texto na publicação anterior, um texto muito parecido com o que poderás encontrar no teu manual (pág. 140-141) retirado do Discurso do Método, a obra mais conhecida de Descartes, o filósofo françês defende que o cogito, isto é, o pensamento, é a primeira verdade que se revela ao espírito como absolutamente verdadeira. Ou seja, o cogito é de tal modo evidente - não posso deixar de acreditar que existo enquanto penso - que pode assumir-se como axioma a partir do qual poderei extrair outras verdades. O fundamento ou a crença básica de que falávamos, e que por isso será a base de todo o edifício do conhecimento. O que é que isso significa e como é que Descartes chegou a essa evidência, é o que veremos de seguida.
Descartes começa por duvidar de tudo quanto podemos colocar em dúvida. E tudo significa mesmo tudo. A existência do mundo exterior, a distinção entre sonho e vigília, o próprio raciocínio. Fá-lo, no entanto, ao contrário dos céticos, não para provar que o conhecimento não é possível, mas para encontrar algo que resista à dúvida e assim possa ser uma base segura a partir da qual possa inferir outras verdades. Trata-se, por isso, de uma dúvida provisória - até que algo se revele indubitável - e metódica, uma vez que se confunde com o próprio método de busca pela verdade.
Em relação à existência do mundo exterior, o argumento é o seguinte: se os sentidos nos enganam às vezes, podem enganar-nos sempre. Quem é que nunca teve uma ilusão ótica? Já andaste na última carruagem do comboio? Pois é, se acreditarmos naquilo que vemos, ou que parece vermos, vamos acreditar que as linhas afunilam à medida que nos afastamos. E o calor no verão? Nunca viste o calor a emergir do alcatrão quente? Será que viste? E não vemos o sol a pôr-se? Mas não é o sol que se põe, correto? Logo não devemos confiar naquilo que vemos, ouvimos, cheiramos... Um argumento um pouco exagerado, é verdade, mas não te esqueças que Descartes tem mesmo que exagerar nesta fase do percurso, trata-se de encontrar um fundamento absolutamente indubitável.
Em relação à distinção entre sonho e vigília, também um pouco exagerado, o argumento é igualmente simples. Uma vez que quando sonhamos tudo nos parece real, sobretudo porque quando sonhamos não podemos sair do sonho e verificar que estamos a sonhar, devemos colocar a hipótese de que tudo não passa de um sonho.
O mesmo para o raciocínio. Se mesmo os mais habilitados se enganam por vezes, além dos erros que cometemos sem nos apercebermos deles (os paralogismos), então não podemos confiar no raciocínio.
Como se isto não bastasse, Descartes chega mesmo a colocar a hipótese de um génio maligno que estaria empenhado em enganar-nos a cada momento. Uma hipótese altamente rebuscada que, ainda assim, veio a ser recolocada já no século vinte sob o nome de cérebro numa cuba: e se eu não passasse um cérebro numa cuba de produtos químicos, ligado a uma série de fios por intermédio dos quais um cientista perverso cria em mim a ilusão da experiência sensorial? Do nosso ponto de vista, podemos levantar-nos e ir ao cinema ou assistir a um concerto. O que estaria a contecer, no entanto, é que o cientista estaria a estimular certos nervos de modo a criar a ilusão de que isso estaria a acontecer na realidade.
Numa palavra, Descarte faz uma epoché. Isto é, suspende o juízo e considera falso tudo quanto se revele minimamente duvidoso.
Levados a este extremo, ao contrário do que se poderia esperar e para desagrado dos céticos, Descartes descobre uma primeira verdade da qual não pode duvidar. Ao duvidar de tudo e ao colocar tudo em suspenso, percebe que não pode deixar de existir enquanto faz isso mesmo: duvidar. Duvida, logo existe enquanto ser que duvida. Repara que a existência de que estamos a falar é uma existência intelectual, o pensamento do ser que duvida enquanto duvida, separado do corpo. Em relação a esse, ao corpo, como em relação a todo o mundo exterior de que o corpo faz parta, Descartes ainda não tem razões para deixar de duvidar.
O cogito ou pensamento é, portanto, a primeira verdade que resiste ao poder corrosivo da dúvida, goza de imunidade, uma vez que não podemos duvidar de que estamos a duvidar, sob o risco de cairmos em contradição. Trata-se de uma impossibilidade lógica. Para duvidar, tenho que pensar. E para pensar, tenho que existir enquanto ser pensante. Trata-se, pois de uma evidência, algo a que Descartes não pode fugir. Não se descobre por raciocínio, não se infere de coisa alguma, é uma intuição racional que resulta da mera inspeção do espírito. Como Descartes também diz, uma ideia clara e distinta. Clara, porque não posso deixar de constatá-la, é evidente. Distinta, porque não se confunde com nenhuma outra.
A importância desta descoberta é dupla. Por um lado, Descartes define o fundamento que procurava, o alicerce que lhe faltava e a partir do qual pode extrarir ouras verdades. Por outro, ganha um critério de verdade - a clareza e disitinção -, uma vez que tudo o que se apresentar ao espírito da mesma forma, isto é, como ideia clara e distinta, deverá ser considerado verdadeiro.
No grupo das ideias claras e distintas estão, por exemplo, os princípios básicos da matemática e a ideia de Deus. Ideias inatas, das quais nos apercebemos sem ter que recorrer à experiência. Ao contrário das ideias adventícias e factícias, respetivamente fundadas nos sentidos e na imaginação, falíveis e geradores de dúvida.
A ideia de Deus, ou de ser perfeito, é particularmente importante, uma vez que é ela que permitirá abandonar o solipsismo - teoria que defende que só podemos ter certeza acerca de nós mesmos - em que Descartes acaba por cair. Não te esqueças que por ora Descartes só tem a certeza acerca de si mesmo enquanto ser pensante: um ser que pensa e tem ideias claras e distintas em si que não foi buscar senão a si mesmo. Com a existência de Deus garantida, que por definição não engana - Deus é sumamente bom -, e na posse de um critério de verdade - a clareza e distinção -, Descartes pode partir para a descoberta do mundo exterior e considerar verdadeiro tudo o que se revelar evidente. Como prova Descartes a existência de Deus? Mais ou menos assim:
1. Tenho a ideia de ser perfeito em mim, que só pode ter vindo dele, uma vez que eu sou imperfeito (duvido);
2. Se é perfeito tem que ter todas as propriedades/qualidades, caso contrário não seria perfeito;
3. Ora, a existência é uma propriedade/qualidade;
4. Logo, Deus existe, caso contrário faltar-lhe ia uma propriedade.
Para saberes se se trata, ou não, de um bom argumento, terás que ler a próxima publicação.

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