segunda-feira, 30 de março de 2020

. Filosofia da Religião 2: o conceito teísta de Deus.




Como depreenderás das publicações anteriores, as "explicações" espirituais e metafísicas para a origem e sentido da vida estão intimamente ligadas à constatação de que somos seres finitos e ao mistério que a ideia de morte provoca em nós. Daí que haja quem defenda que devemos procurar as primeiras manifestações religiosas logo na pré-história, desde que o Homem se reconhece como Homem. Ainda que tal como as entendemos hoje, isto é, como sistema de crenças organizado e partilhado por um grande número de crentes que se revêem num mesmo culto, não precisemos de recuar até tão longe. O Taoismo, o Confucionismo e o Budismo, preponderantes na Àsia; o Hinduismo, sobretudo na Índia; as religiões do Antigo Egito e o Zoroastrismo na antiga Pérsia, atual Irão; o politeísmo da Grécia e Roma antigas; mais ou menos por esta ordem, todas antes de Cristo, são comummente apontadas como as primeiras entendidas nesse sentido.
Como teístas, isto é, como religiões monoteístas que assentam na crença de um só Deus que tudo sabe (omnisciente), que tudo pode (omnipotente), sumamente bom, atemporal e único criador do universo, temos de recuar menos ainda. Isto se pensarmos no cristianismo, com pouco mais de 2000 anos, e no islamismo, pois claro, com cerca de 1500 anos apenas. Uma vez que o judaísmo, a primeira grande religião monoteísta, é anterior aos cultos do Egito antigo, de onde os judeus acabariam por ser expulsos. 
Embora sejam todas abraâmicas, isto é, com origem em Abraão, e estruradas sobre escrituras sagradas, daí também serem apelidadas de religiões do Livro, as três religiões monoteístas exibem algumas diferenças entre si. Por exemplo, ao contrário do Cristianismo, o deus dos judeus é total e radicalmente transcendente, isto é, jamais poderia ter assumido a forma humana. É essa, aliás, a grande diferença entre estas duas religiões, que partilham um mesmo livro: o livro sagrado para os judeus, a Tora, corresponde ao Pentateu, os cinco primeiros livros da Bíblia, que constituem o Antigo Testamento onde surge a figura de Abraão (Genesis) e não Cristo, filho de deus para os cristãos, que surge apenas no Novo Testamento. O Alcorão, por sua vez, é o livro sagrado dos muçulmanos. Um livro supostamente escrito com a intervenção direta de Alah, o nome de deus para o Islão, uma vez que há fortes razões para acreditar que o seu profeta e difusor, Maomé, teria sido analfabeto.
Nas próximas publicações terás oportunidade de analisar algumas provas da existência deste deus teísta: omnipresente, omnisciente, sumamente bom, criador de tudo e de todas as coisas... Para já, deixo-te um texto que poderá ajudar-te a compreender a origem dos três monoteísmos, mas agora do ponto de vista de um ateu ou ateísta, isto é, alguém que nega convictamente, às vezes agressivamente, a existência de qualquer deus:
            "Visto que só os homens inventam mundos escondidos, deuses ou um só Deus; só eles se prosternam, se humilham, se rebaixam; só eles fabulam e se convencem das histórias fabricadas pelas suas preocupações de modo a evitar olhar de frente o seu destino; a partir das suas ficções, só eles constroem um delírio que arrasta consigo uma ladainha de disparates perigosos e novas escapatórias; de acordo com o princípio de Gribouille, só eles trabalham arduamente na realização daquilo a que, ainda assim, fogem como de nenhuma outra coisa: a morte.
            Parece-lhes impossível viver uma vida que tem a morte como fim inevitável? Depressa tratam de convocar o inimigo para lhes governar a vida dispondo-se a morrer um pouco todos os dias, regularmente, com o intuito de acreditar, logo que a hora chegar, numa passagem mais fácil. As três religiões monoteístas convidam a renunciar ao vivo aqui e agora sob o pretexto que um dia será necessário fazê-lo: glorificam um além (fictício) para impedir que se frua plenamente o aqui-em-baixo (real). O carburante que usam? A pulsão de morte e as incessantes variações sobre esse tema.
(...)
Animados por uma mesma pulsão de morte genealógica, os três monoteísmos partilham uma série de desprezos idênticos: ódio à razão e à inteligência; ódio à liberdade; ódio a todos os livros em nome de um só; ódio à vida; ódio à sexualidade, às mulheres e ao prazer; ódio ao feminino; ódio ao corpo, aos desejos, às pulsões. Em vez de tudo isso, judaísmo, cristianismo e islão defendem: a fé e a crença, a obediência e a submissão, o gosto pela morte e a paixão pelo além, o anjo assexuado e a castidade, a virgindade e a fidelidade monogâmica, a esposa e a mãe, a alma e o espírito. O mesmo é dizer a vida crucificada e a celebração do nada…
(...)
Os defensores da lei mosaica, os farelórios crísticos e os seus clones corânicos partilham a mesma fábula sobre a origem da negatividade no mundo: seja no Génesis (III, 6) – comum à Tora e ao Antigo Testamento da Bíblia cristã -, seja no Alcorão (II, 29), lá está a mesma história de Adão e Eva num Paraíso, proibidos de se aproximarem de uma árvore por um Deus enquanto um demónio os convida à desobediência. Uma versão monoteísta do mito grego de Pandora, a primeira mulher a cometer evidentemente o irreparável e assim a espalhar o mal pelo planeta."
( Michel Onfray, Tratado de Ateologia )

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