terça-feira, 7 de abril de 2020

. O problema do mal e a defesa do livre-arbítrio



. Filosofia da Religião 4: a existência de Deus e o problema do mal



O problema que agora se coloca é o de saber se a existência de Deus, entendido como ser justo e perfeito, é ou  não conciliável com a existência de um mundo repleto de injustiças e imperfeições. Trata-se de uma estratégia comummente utilizada pelos ateus que  decidem, na impossibilidade de provarem a inexistência de Deus, confrontar os crentes com aquilo que é uma evidência: a existência do mal no mundo. Seja do mal moral, isto é, aquele que os seres humanos infligem uns aos outros - assassínios, guerras, discriminação, abuso e tráfico de seres humanos... -, ou do mal natural - terramotos, tsunamis, doenças incuráveis e epidemias.... Uma estratégia que pode ser traduzida no argumento que se segue:
  1. Se Deus existisse, não existiria o mal.
  2. O mal existe.
  3. Logo, Deus não existe.
Como já terás percebido, estamos na presença de uma forma de inferência válida, o Modus Tollens que já conheces. Se é ou não um argumento sólido, uma vez que as premissas parecem verdadeiras, pelo menos a segunda, é o que veremos de seguida. Antes, porém, reformulemos o argumento numa versão um pouco mais extensa, de modo a referir os atributos  normalmente atribuídos a Deus:
  1. Se Deus é omnisciente, sabe que o mal existe.
  2. Se é sumamente bom, deverá querer impedi-lo.
  3. Se é omnipotente, pode impedi-lo.
  4. Se Deus existisse, então não haveria mal no mundo.
  5. Ora, o mal existe.
  6. Logo, Deus não existe.
Parece que não há nada a dizer, de facto, em relação à existência do mal no mundo (2ª premissa da 1ª versão, 5ª da segunda), trata-se de uma evidência ao alcance de qualquer um. Em relação à 1ª premissa da 1ª versão, 4ª da segunda, isto é, à ideia de que a existência de Deus é incompatível com a existência do mal, a resposta já não é tão simples.
Comecemos pelo questão do mal moral, cuja responsabilidade deverá ser atribuída aos seres humanos. Segundo os crentes em geral e alguns pensadores em particular, nomeadamente Richard Swinburne, um filósofo inglês nascido já no século XX (1934), o mal moral deve ser entendido como sinal da confiança que Deus depositou na espécie humana. Segundo esta perspetiva, se estivéssemos condenados a fazer o bem, como autómatos e sem alternativa, as ações que geralmente classificamos como boas não teriam qualquer valor. Não teríamos como compará-las, de modo a distingui-las como modelos a seguir. Numa palavra, não existiriam heróis. É essa a razão pela qual Deus terá arriscado e nos concedeu o livre-arbítrio, mesmo que alguns o exerçam da pior maneira, para que estejamos cientes da fronteira entre bem e mal e, em última análise, possamos investir no nosso aperfeiçoamento moral. Concluindo e resumindo: a existência do mal no mundo, entendido como mal moral, por paradoxal que pareça, resulta da dignificação do ser humano. Um ser a quem foi dada a possibilidade de escolher e que, por isso mesmo, poderá e deverá combater os atos imorais. A existência de Deus não é, portanto, para retomarmos as premissas em análise, incompatível com o mal cuja origem deverá ser procurada exclusivamente no carácter daqueles que fazem uso indevido de uma dádiva divina: o livre-arbítrio.
Em relação ao mal natural, como  os desastres ecológicos e a mais recente epidemia que tem vindo a dizimar milhares de pessoas em todo o mundo, a resposta dos teístas é semelhante. Os primeiros, sobretudo se pensarmos naqueles que são consequência do aquecimento global, talvez devessem ser seriamente entendidos como a derradeira oportunidade para repensarmos o modo como temos vindo a sobreexplorar  e desperdiçar os recursos naturais de modo a adiarmos o aparentemente inevitável colapso do  planeta Terra. Os outros, as doenças e epidemias sobre as quais não temos qualquer responsabilidade, por muita estranheza e contestação que gera nos ateus, a mesma coisa. Devemos resistir e encará-los como um mal necessário, sem o qual deixaríamos de investir no progresso tecnologico-científico que poderá salvar-nos de tragédias futuras. Numa palavra, como oportunidade para nos tornarmos mais capazes e mais fortes. Já agora, mais solidários também. 

segunda-feira, 6 de abril de 2020

. Filosofia da Religião 3: Fideísmo ou a fém sem provas



Como tinha ficado sugerido no final da publicação anterior, há filósofos que consideram a razão e a fé processos incompatíveis. Para esses autores, a fé religiosa vai buscar a sua força, precisamente, ao facto de não haver boas razões para justificar a existência daquilo em que se acredita. Quanto mais ultrapassar as possibilidades da compreensão humana, maior a "dose" de fé que Deus inspira nos crentes - a fé começa onde a razão acaba -. Ter fé seria isso mesmo, crer naquilo que ultrapassa o poder de aceitação da razão, aceitarmos a existência de Deus assumindo a nossa incapacidade de a demonstrar - para quê ter fé em algo que existe ou se provou que existe? -. Acreditar será sempre, por isso, de acordo com Kierkegaard, um dos mais importantes fideístas, um risco vivido intimamente e uma fonte de angústia permanente. O risco e a angústia, continua esse filósofo, resultantes do facto de não ser possível provar nem o Absoluto nem o dogma paradoxal em que a sua fé cristã assenta como um edifício nos seus alicerces: Deus, o Eterno, mesmo sendo omnipotente, encarnou e assumiu a forma humana, sacrificando-se por cada um de nós. Difícil de acreditar, não é? Pois é, mas é exatamente por isso que a fé é uma experiêncial especial, única e dificilmente ao alcance de toda a gente.
Outra forma de colocar a questão da fé, menos "misteriosa" que a de Kierkegaard, foi a encontrada por Pascal, um filósofo e matemático francês contemporâneo de Descartes durante grande parte da sua vida (1623-1662). A sua proposta ficou conhecida por "aposta de Pascal" e pode ser resumida da maneira que se segue: aceitando que não há boas provas da existência de Deus, assim como não há boas provas da sua inexistência - esse é o grande problema dos ateus - o que será melhor fazer? Acreditar ou não acreditar?
Para Pascal parece não restarem dúvidas, é preferível acreditar. Senão vejamos:
1. Se Deus existir e formos crentes temos tudo a ganhar, a vida eterna, por exemplo. Ao passo que se formos crentes e Deus não existir não perdemos grande coisa, quando muito umas horas de oração e penitência em vão.
2. Se não acreditarmos e Deus realmente não existir não ganhamos nada de importante, mas temos tudo a perder se não acreditarmos e Deus afinal existir.
Logo, conclui o probabilista, o mais razoável a fazer é acreditarmos em Deus.


Aparentemente irresistível, o "argumento" de Pascal não está isento de críticas. Deixo-te algumas de seguida:

. Pascal parte do princípio que se Deus existir e não formos crentes, temos tudo a perder. Mas como sabe Pascal que isso á verdadeiro? Afinal Deus é sumamente bom, e não vingativo, pelo que não há boas razões para acreditar que irá castigar boas pessoas que não têm a sorte de acredita em Si. Assim sendo, é falso que temos tudo a perder se não acreditarmos em Deus.
. Ninguém decide acreditar em algo assim de um momento para o outro. Normalmente, as nossas crenças são causadas por outras crenças, sendo que todas dependem da nossa experiência do mundo. Se nascermos numa família de crentes, muito provavelmente vamos tornar-nos crentes à semelhança daqueles com quem sempre convivemos, ou talvez não. Da mesma forma que se nascermos numa família de ateus dificilmente viremos a colocar a hipótese de um ser divino e transcendente. Seja como for, ninguém passa a creditar em Deus de um dia para o outro sem uma razão suficientemente forte.
. Finalmente, mas não menos importante, não podemos deixar de considerar a aposta de Pascal um exercício interesseiro e conveniente para gente que não é convicatemente responsável. Uma vez que é mais razoável pensarmos que Deus prefere pessoas dignas, mesmo que não acreditem nele, a pessoas que só fazem o bem por temerem o Inferno.

domingo, 5 de abril de 2020

. Será a ideia de "ser maior do que o qual nada pode ser pensado" absurda?



. Provas da existência de Deus 3: o argumento ontológico



O argumento ontológico foi proposto pela primeira vez por Santo Anselmo, um filósofo e teólogo que viveu na Idade Média (1033-1109), naquela que é a sua obra mais célebre, o Proslogion. Durante muito tempo foi conhecido por "Argumento de Anselmo", até que Kant, um filósofo que já conheces, lhe chamou ontológico. A razão prende-se com o facto, ao contrário do argumento cosmológico, que parte da existência do universo, e do teológico, que parte da ordem exibida pelo universo, de se tratar de um argumento que se basei única e exclusivamente na análise da natureza hipotética de Deus. Trata-se, portanto, ao contrário daqueles, de um argumento a priori, isto é, cujas premissas não se apoiam em qualquer informação empírica. 
Em termos gerais, o argumento tenta provar que seria contraditório pensar em Deus sem admitir a sua existência. Ou seja, da mesma forma que não podemos pensar num triângulo com mais do que três ângulos sem entrar em contradição, também seria impossível pensar num ser perfeito (Deus) sem reconhecer a sua existência necessária, sem o que lhe faltaria uma das perfeições. Daí que, além de a priori, se trate de um argumento por redutio ad absurdum (por redução ao absurdo), uma vez que se tenta provar, além da existência de Deus, que seria absurdo (contraditório) supor um ser perfeito que não existe. Vejamos, agora, como se formula o argumento:
  1. Ou Deus existe apenas no pensamento ou, além de existir no pensamento, existe na realidade.
  2. Deus existe apenas no pensamento.
  3. Se Deus existe apenas no pensamento, então podemos conceber um ser maior do que Deus que, além de existir no pensamento, também exista na realidade.
  4. Podemos conceber um ser maior do que Deus que, além de existir no pensamento, também existe na realidade.
  5. Mas Deus é, por definição, o ser maior do que o qual nada pode ser pensado. Não podemos, portanto, conceber um ser maior do que Ele.
  6. É falso que Deus existe apenas no pensamento.
  7. Logo, além de existir no pensamento, Deus existe na realidade.
Embora seja um exercício de lógica notável e para muitos uma prova sedutora da existência de Deus, a verdade é que o argumento está longe de gerar unanimidade. De facto, as críticas ao argumento não se fizeram esperar, desde logo no século XI, por parte de Gaunilo de Marmoutier, um monge contemporâneo de Santo Anselmo. De seguida, deixo-te algumas dessas críticas e outras objeções:

A primeira grande crítica, na sequência do que aquele monge tinha dito desde logo - se o argumento ontológico fosse bom, poderíamos provar a existência do que quiséssemos -, prende-se com o facto de que não basta pensar no ser perfeito para que possamos concluir pela sua existência. Se assim fosse, bastaria pensar na ilha perfeita para que estivéssemos forçados a admitir a sua existência, uma vez que se não existisse, de acordo com a definição de perfeicão proposta por Santo Anselmo, a ilha não seria perfeita. Da mesma forma que bastaria pensar no amigo perfeito, na namorada ou namorado perfeitos... para que existissem necessariamente. A realidade, porém, mostra-nos que não é bem assim!

A segunda crítica, que no fundo é uma extensão da primeira, prende-se com o facto de Santo Anselmo ter dado um "salto ontológico" indevido. Por outras palavras, por ter confundido existência intelectual, isto é, entidades mentais, como os números, e existência física. Uma coisa é pensar em cinco maçãs, outra é, de facto, ter essas maçãs à minha frente e poder saboreá-las. Dito de outro modo, Santo Anselmo não distinguiu as propriedades que podemos reconhecer a qualquer personagem de ficção, sem qualquer contradição porque não existem fisicamente, e a propriedade da existência real. Ter poderes extraordinários e ser imortal, efetivamente, não são propriedades do mesmo género que a propriedade da existência. As primeiras, como dizemos em filosofia, são propriedades secundárias, como a cor, o odor, os sons, os gostos... A segunda é uma propriedade primária, como a extensão, o tamanho, a forma, a solidez...de onde derivam ou defluem (flow), como Locke prefere dizer, as primeiras. Ou seja, Deus teria de existir primeiro para que depois lhe pudéssemos reconhecer todas as suas perfeições - omnisciência, omnipresença, omnipotência... - e não o contrário - Deus é a coisa maior do que a qual nada pode ser pensado, logo terá de existir -.

Outra crítica resulta do facto da primeira premissa não contemplar a possibilidade de Deus não existir no pensamento, o que não significa que não exista. Isto é, a possibilidade de Deus ser de tal modo perfeito e infinito que não seria possível representá-lo mentalmente. Uma ideia que virá a ser sustentada pelos fideístas, segundo os quais fazer depender a crença em Deus da existência de boas provas e bons argumentos significa esquecer aquilo há de especial na religião: a fé. Mas do fideísmo e dos fideístas, que vivem a fé em Deus sem necessidade de qualquer prova, falaremos na próxima publicação.

sábado, 4 de abril de 2020

. Por que existe o universo e não o nada: Leibniz à prova!



. Provas da existência de Deus 2: o argumento cosmológico



O argumento cosmológico procura provar a existência de Deus partindo dos dados da observação empírica, tentando responder a duas perguntas muito concretas que muito provavelmente já fizeste a ti mesmo: qual a origem do mundo, do cosmos, e por que há mundo e não o nada? É, portanto, um argumento a posteriori.
Embora se trate de um argumento com defensores desde logo na antiguidade, Platão e Aristóteles, e com várias versões já na modernidade, as de Descartes e Locke, por exemplo, a versão mais famosa é a de São Tomás de Aquino, um Doutor da Igreja que viveu entre 1225 e 1274.
São Tomás de Aquino nasceu em Itália, numa família aristocrática, estudou em Colónia, onde contacta pela primeira vez com a filosofia de Aristóteles, que viria a influenciar o seu pensamento, acabando por se tornar professor em Paris e em Roma, onde também foi conselheiro da corte papal. A sua obra capital chama-se Summa Theologica e inclui as famosas "Cinco Vias" para provar a existência de Deus. A prova que por ora nos interessa explorar, baseada na ideia de causa, encontra-se na Segunda Via e é conhecida por argumento da causa primeira. Vejamos, então, como é formulado esse argumento:
  1. Não há nada neste mundo que não tenha uma causa (tudo tem uma causa).
  2. Nenhuma coisa é causa de si mesma (causa sui).
  3. Tudo o que é causado é causado por outra coisa, por algo diferente de si.
  4. Não pode haver uma regressão infinita (ad infinitum) na cadeia das causas.
  5. Se não pode haver uma regressão infinita na cadeia das causas, então terá de existir uma causa primeira, incausada e que tudo causa.
  6. Essa causa primeira é Deus.
  7. Logo, Deus existe (necessariamente).
Como podes verificar, o argumento parte de uma ideia consensual, a ideia de que tudo na natureza tem uma causa. Isto é, que tudo é consequência ou efeito de uma causa anterior ou precedente. Uma premissa verdadeira, portanto, que em princípio garantirá a solidez do argumento. Ou seja, se tudo tem uma causa e essa causa, por sua vez, também terá necessariamente uma causa, terá de haver uma primeira causa para tudo. Caso contrário, tal como estudaste a propósito do argumento cético, entraríamos numa regressão infinita, isto é, numa busca incessante por uma causa original. A resposta à primeira pergunta de que partíamos - qual a origem do mundo? - está, portanto, encontrada: Deus é a origem de todas as coisas. 
Ora, mas se tudo tem uma causas e nada é causa sui, de acordo com as primeiras premissas do argumento, por que razão ficaria Deus isento desta condição? Dito de outro modo, se tudo tem uma causa, não terá Deus que ter uma causa também? Se não for esse o caso, isto é, se Deus é incausado, a conclusão contradiz as premissas, pelo que o argumento deve ser considerado autocontraditório. A não ser que Deus não estivesse sujeito às leis que governam a natureza, segundo as quais tudo é efeito de uma causa. Mas se é assim, isto é, se Deus não está sujeito às leis naturais de que é a causa, como se explica que esteja na sua origem? É esse, aliás, o sentido da crítica que Kant virá a fazer ao argumento cosmológico: como explicar que uma entidade metafísica gere e determine as leis da física? Mais, agora de novo em relação ao caráter autocontraditório do argumento, por que razão devemos pensar que Deus é causa de si mesmo e não o próprio universo? Que nos impede de pensar que o universo se gerou a si mesmo num determinado momento - o Big Bang, por exemplo - ou até que existiu desde sempre? Fica a questão...
Em relação à segunda pergunta - por que existe o mundo e não o nada? - devemos procurar resposta numa segunda versão do argumento, uma versão apresentada por Leibniz (1646-1716), um filósofo alemão influenciado por Descartes e Locke, a que se dá o nome de argumento da sequência das causas e cuja formulação simplificada deixo de seguida:
  1. Ou a sequência de seres para no Big Bang ou continua para sempre.
  2. Se para no Big Bang, temos de supor que foi Deus quem o criou (o Big Bang).
  3. Se não para no Big Bang, temos de supor que foi Deus quem criou essa sequência infinita.
  4. Logo, em qualquer dos casos, Deus existe.
Uma versão, à semelhança da primeira, também ela alvo de objeções:

1ª objeção - Por que razão temos de supor, de acordo com a segunda premissa, que se a sequência de seres para no Big Bang foi Deus quem o originou? O Big Bang pode ter surgido do nada, ou talvez seja um acontecimento necessário, isto é, algo que não poderia ter deixado de acontecer. Logo, a premissa é pelo menos duvidosa.

2ª objeção -  Por que razão temos de supor, de acordo com a terceira premissa, que se a sequência de seres não para no Big Bang, isto é, se é infinita, foi Deus quem a causou? Não existirão outras maneiras de a justificar? Por que não supor que a sequência é eterna e que não podia deixar de acontecer? Por que não supor que surgiu do nada? Ou seja, tal como a segunda, a terceira premissa é no mínimo duvidosa.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

. William Paley e o relojoeiro divino!



. Provas da Existência de Deus 1: o argumento teleológico ou do desígnio



O argumento teleológico, também conhecido por argumento do desígnio, foi formulado por William Paley, um filósofo e teólogo britânico ordenado padre da Igreja Anglicana em 1767, naquela que é a mais conhecida das suas obras: Teologia Natural - ou Provas da Existência e Atributos da Divindade Recolhidos em Aspetos da Natureza.
Tal como o nome da obra indica, o teólogo oitocentista baseia a sua prova na observação e explicação do funcionamento da natureza. Concluindo, depois de comparar o funcionameno interno da natureza ao de um relógio, que foi necessariamente criado por um artífice inteligente, o relojoeiro, que também na natureza nada acontece por acaso, isto é, que todos os seres vivos e a natureza em geral têm um propósito e uma finalidade conferidos pelo seu criador - Deus, o sumo artífice -. Trata-se, portanto, de um argumento não dedutivo por analogia em que se comparam duas realidades diferentes, embora semelhantes em alguns aspetos, para mostrar como são igualmente semelhantes em aspetos menos evidentes à partida. Se respeita, ou não, os critérios de um bom argumento por analogia - as semelhanças de que parte devem ser relevantes e as diferenças entre as duas realidades não deverão ser mais importantes que essas semelhanças - é o que veremos. Para já, formulemos o argumento na sua forma canónica:

Premissa 1: Os relógios exibem uma estrutura complexa e perfeita que só pode ter sido obra de um ser inteligente, o artífice.
Premissa 2: Tal como os relógios, também os seres vivos e a natureza em geral exibem uma estrutura complexa cujas partes se ajustam de modo perfeito.
Conclusão: Logo, tal como os relógios, também os seres vivos e a natureza têm de ser obra de um criador inteligente, que é Deus.

Concentremo-nos na segunda premissa, em que a analogia é estabelecida, e vejamos se se trata, então, de um bom argumento. Será a natureza realmente comparável a um relógio, isto é, para recuperarmos os requisitos formais de uma boa analogia, será que as semelhanças estabelecidas são verdadeiramente relevantes? Ou seja, para recuperarmos o segundo requisito, será que a natureza é realmente harmoniosa e bem organizada? Mais, ainda de acordo com o segundo requisito, não serão as diferenças entre um relógio e a natureza mais relevantes do que as semelhanças que podemos estabelecer entre essas duas realidades?
Em relação à primeira questão, a resposta é negativa. De facto, as semelhanças entre as duas realidades - relógio e natureza - não são verdadeiramente relevantes, pelo que não justificam a comparação. No que diz respeito aos artefactos em geral e aos relógios em particular, parece não existirem dúvidas, já vimos vários e todos exibem uma estrutura que só pode ter sido criada por um artífice. Em relação à natureza e ao universo, porém, não podemos estar seguros do mesmo, uma vez que só conhecemos uma natureza e um universo. Não podendo, portanto, concluir nada em relação à sua complexidade e perfeição. 
Além disso, mais importante ainda, de acordo com a evidência científica, são processos exclusivamente naturais e a intervenção do acaso, ao longo de um lento processo de adaptação e ajustes sucessivos, que dão origem à ordem. É essa, aliás, a base da teoria evolucionista de Charles Darwin (1809-1882), segundo a qual o acaso - o cruzamento imprevisível de duas cadeias causais - é muitas vezes responsável pela ordem. O que nos leva a concluir, agora relativamente à segunda questão, que o número de diferenças entre as duas realidades - relógio e natureza - são muito mais relevantes do que as semelhanças que estão na origem do argumento. O mesmo é dizer, para falarmos das falácias que já estudaste, a analogia em que o argumento se baseia é, numa palavra, fraca. 

segunda-feira, 30 de março de 2020

. As religiões pelo Mundo



. Filosofia da Religião 2: o conceito teísta de Deus.




Como depreenderás das publicações anteriores, as "explicações" espirituais e metafísicas para a origem e sentido da vida estão intimamente ligadas à constatação de que somos seres finitos e ao mistério que a ideia de morte provoca em nós. Daí que haja quem defenda que devemos procurar as primeiras manifestações religiosas logo na pré-história, desde que o Homem se reconhece como Homem. Ainda que tal como as entendemos hoje, isto é, como sistema de crenças organizado e partilhado por um grande número de crentes que se revêem num mesmo culto, não precisemos de recuar até tão longe. O Taoismo, o Confucionismo e o Budismo, preponderantes na Àsia; o Hinduismo, sobretudo na Índia; as religiões do Antigo Egito e o Zoroastrismo na antiga Pérsia, atual Irão; o politeísmo da Grécia e Roma antigas; mais ou menos por esta ordem, todas antes de Cristo, são comummente apontadas como as primeiras entendidas nesse sentido.
Como teístas, isto é, como religiões monoteístas que assentam na crença de um só Deus que tudo sabe (omnisciente), que tudo pode (omnipotente), sumamente bom, atemporal e único criador do universo, temos de recuar menos ainda. Isto se pensarmos no cristianismo, com pouco mais de 2000 anos, e no islamismo, pois claro, com cerca de 1500 anos apenas. Uma vez que o judaísmo, a primeira grande religião monoteísta, é anterior aos cultos do Egito antigo, de onde os judeus acabariam por ser expulsos. 
Embora sejam todas abraâmicas, isto é, com origem em Abraão, e estruradas sobre escrituras sagradas, daí também serem apelidadas de religiões do Livro, as três religiões monoteístas exibem algumas diferenças entre si. Por exemplo, ao contrário do Cristianismo, o deus dos judeus é total e radicalmente transcendente, isto é, jamais poderia ter assumido a forma humana. É essa, aliás, a grande diferença entre estas duas religiões, que partilham um mesmo livro: o livro sagrado para os judeus, a Tora, corresponde ao Pentateu, os cinco primeiros livros da Bíblia, que constituem o Antigo Testamento onde surge a figura de Abraão (Genesis) e não Cristo, filho de deus para os cristãos, que surge apenas no Novo Testamento. O Alcorão, por sua vez, é o livro sagrado dos muçulmanos. Um livro supostamente escrito com a intervenção direta de Alah, o nome de deus para o Islão, uma vez que há fortes razões para acreditar que o seu profeta e difusor, Maomé, teria sido analfabeto.
Nas próximas publicações terás oportunidade de analisar algumas provas da existência deste deus teísta: omnipresente, omnisciente, sumamente bom, criador de tudo e de todas as coisas... Para já, deixo-te um texto que poderá ajudar-te a compreender a origem dos três monoteísmos, mas agora do ponto de vista de um ateu ou ateísta, isto é, alguém que nega convictamente, às vezes agressivamente, a existência de qualquer deus:
            "Visto que só os homens inventam mundos escondidos, deuses ou um só Deus; só eles se prosternam, se humilham, se rebaixam; só eles fabulam e se convencem das histórias fabricadas pelas suas preocupações de modo a evitar olhar de frente o seu destino; a partir das suas ficções, só eles constroem um delírio que arrasta consigo uma ladainha de disparates perigosos e novas escapatórias; de acordo com o princípio de Gribouille, só eles trabalham arduamente na realização daquilo a que, ainda assim, fogem como de nenhuma outra coisa: a morte.
            Parece-lhes impossível viver uma vida que tem a morte como fim inevitável? Depressa tratam de convocar o inimigo para lhes governar a vida dispondo-se a morrer um pouco todos os dias, regularmente, com o intuito de acreditar, logo que a hora chegar, numa passagem mais fácil. As três religiões monoteístas convidam a renunciar ao vivo aqui e agora sob o pretexto que um dia será necessário fazê-lo: glorificam um além (fictício) para impedir que se frua plenamente o aqui-em-baixo (real). O carburante que usam? A pulsão de morte e as incessantes variações sobre esse tema.
(...)
Animados por uma mesma pulsão de morte genealógica, os três monoteísmos partilham uma série de desprezos idênticos: ódio à razão e à inteligência; ódio à liberdade; ódio a todos os livros em nome de um só; ódio à vida; ódio à sexualidade, às mulheres e ao prazer; ódio ao feminino; ódio ao corpo, aos desejos, às pulsões. Em vez de tudo isso, judaísmo, cristianismo e islão defendem: a fé e a crença, a obediência e a submissão, o gosto pela morte e a paixão pelo além, o anjo assexuado e a castidade, a virgindade e a fidelidade monogâmica, a esposa e a mãe, a alma e o espírito. O mesmo é dizer a vida crucificada e a celebração do nada…
(...)
Os defensores da lei mosaica, os farelórios crísticos e os seus clones corânicos partilham a mesma fábula sobre a origem da negatividade no mundo: seja no Génesis (III, 6) – comum à Tora e ao Antigo Testamento da Bíblia cristã -, seja no Alcorão (II, 29), lá está a mesma história de Adão e Eva num Paraíso, proibidos de se aproximarem de uma árvore por um Deus enquanto um demónio os convida à desobediência. Uma versão monoteísta do mito grego de Pandora, a primeira mulher a cometer evidentemente o irreparável e assim a espalhar o mal pelo planeta."
( Michel Onfray, Tratado de Ateologia )

domingo, 29 de março de 2020

. O mito de Sísifo e o sentido da vida segundo os Monthy Python!


 





. Filosofia da religião 1: o problema da existência de deus e a sua importância filosófica



Colocar o problema da existência de deus - deus existe ou não existe? - significa, num primeiro momento, perguntar se a existência humana e a vida têm ou não sentido.
Para quem nega a existência de deus, como Nietzsche, a vida será destituída de qualquer sentido objetivo - em si mesma e para lá daquele que cada um de nós lhe atribui -, e provavelmente absurda, como absurda é a tarefa de Sísifo.  A não ser, pois claro, que o sentido seja entendido subjetivamente, isto é, a vida terá o sentido que cada um lhe confere. Tal como defende Sartre, um existencialista francês para quem não haveria qualquer essência ou natureza humana que cada um de nós estivesse condenado a concretizar. Para este filósofo, não só não estamos condenados a cumprir um plano essencial e objetivo - um plano divino, por exemplo -, como ninguém nos pode substituir nas decisões que tomamos - é a isso que estamos condenados, a ter de decidir -. Ou seja, ainda de acordo com o existencialista, primeiro existimos e só depois nos tornamos naquilo que somos - não somos como um pisa papéis particular que concretiza a ideia geral e abstrata de pisa papéis! -, sempre em resultado das nossas decisões livres e nunca cumprindo um plano que nos escapa. Quanto mais responsáveis, as nossas decisões, mais sentido fariam, como virá a dizer Susan Wolf, uma filósofa americana contemporânea, otimista, para quem "as vidas com sentido são vidas de entrega ativa a projetos de valor".
Para quem supõe a existência de Deus, por seu turno, como são os casos de Tolstoi, um escritor russo, e Kierkegaard, um filósofo dinamarquês, ambos do século XIX, a vida tem o sentido objetivo que Deus lhe confere. Privado de uma relação com Deus, o ser humano desperdiçaria a sua vida e estaria condenado ao desespero absoluto. Com Deus, somos muito mais que mero grão de poeira num universo infinito, somos criaturas de passagem entregues a uma missão superior, além de que podemos aspirar à vida eterna. É isso que devemos concluir dos chamados argumento do propósito, segundo o qual Deus dá sentido à nossa existência porque lhe dá um propósito ou finalidade,  e do argumento teísta, defendido por Philip Quinn já no século XX, segundo o qual a vida não fará sentido senão formos imortais e nada do que fizermos for permanente. 



sábado, 28 de março de 2020

. Morris Weitz e a indefinibilidade da arte


Morris Weitz, um filósofo americano do século XX (1916-1981), defendeu que seria impossível definir arte. De uma forma muito simples, o filósofo entende que o conceito de arte é um "conceito aberto", isto é, um conceito cuja extensão poderá ser revisto a qualquer momento. Logo, por exemplo, que surja um novo objeto ou expressão artística que não se deixam explicar pela definição e assim nos obriguem a alargar o conceito. Como mostra, aliás, a longuíssima  história da arte, cujas galerias estão sempre "prontas" a admitir objetos surpreendentes, às vezes sem qualquer relação com o que a dada altura se considera ser arte. Dito de outro modo, segundo este filósofo todas as teorias teriam falhado quando tentaram determinar uma natureza comum a todas as obras de arte, exatamente porque tomavam o conceito de arte como um conceito fechado incapaz de incluir os objetos emergentes. O mesmo é dizer, para recuperarmos a nossa definição de definição, todas as teorias identificaram propriedades provavelmente necessárias para que possamos afirmar estar perante uma obra de arte, embora nenhuma dessas propriedades fosse suficiente.
Claro que Morris Weitz também foi criticado e as objeções à sua teoria não faltam. Para aprofundares o estudo da proposta do autor e das objeções de que foi alvo, deixo-te o artigo que se segue: https://criticanarede.com/contraweitz.html

domingo, 1 de março de 2020

. Escola e criatividade: para seguir...


. Teoria Expressivista (Idealista)


Para os defensores desta teoria, a verdadeira obra de arte não é física: é uma ideia ou emoção na mente do artista. É verdade que o artista se socorre de elementos materiais – sons, palavras, cores, formas, etc...-, mas a obra de arte é o que pretende dizer através desse meio. Numa palavra, a obra de arte é um fim em si mesmo, a intenção e a mensagem, nunca um meio para um propósito específico.




Críticas à teoria expressivista

A principal objecção a esta teoria é a estranheza provocada pelo facto de considerar as obras de arte ideias que permanecem na mente do artista, em vez de objectos físicos e de artefactos: quando vamos a um museu, o que vemos não passa de vestígios das verdadeiras criações artísticas. Esta é uma ideia difícil de aceitar, apesar de ser mais plausível no caso da literatura e da música, onde não há um objecto físico único. Além disso, a teoria é excessivamente restritiva: há muitas obras de arte que foram criadas para cumprir um propósito específico – os retratos, por exemplo -, outras para cumprir propósito nenhum, como a arta aleatória, e não é por isso que vamos deixar de as considerar enquanto tal.



. Teoria Representacionista

Platão e Aristóteles, embora com algumas diferenças entre si, concebiam a arte como exercício de imitação da natureza. Uma proposta que não dá conta nem da arte abstrata nem da arte  meramente decorativa. Como acontece com a música instrumental, por exemplo, ou com a pintura que não refere nenhum objeto familiar, tal como acontece com os quadros de Malevich que se simbolizam/representam a si próprios. 


Por essa mesma razão, os adeptos daqueles filósofos sugeriram que se substituísse a ideia de imitação pela ideia mais ampla de representação. A ideia é simples, uma vez que por representação se entende o ato pelo qual algo toma intencionalmente o lugar de outra coisa, mesmo que não a imite. Ou seja, se toda a imitação é representação nem toda a representação é imitação, como acontece com os sinais de trânsito que representam sem ilustrar. Ainda assim, os defensores desta teoria não estão isentos de crítica, uma vez que há obras de arte, como os monumentos ou os ready made, que nada representam. A não ser, pois claro, como sugerem outros ainda, é o caso de Nelson Goodman, que se representem a si próprias.




. Teoria Histórica de Levinson



Além das limitações da Teoria Institucional já denunciadas, nomeadamente o facto de vermos uma série de artistas verdadeiramente talentosos condenados a viver na sombra, só porque os holofotes do mundo da arte estão apontados noutra direção, convém levar a crítica mais longe. Para fazê-lo, nada melhor do que escutarmos Jerrold Levinson (1948), um prestigiado filósofo norte americano com variadíssimas publicações sobre a questão da arte em geral e da música em particular. 
Segundo Levinson, exatamente para que o estatuto de obra de arte não dependa do acaso nem da vontade circunstancial dos Midas quase exclusivamente movidos pelo Mercado, devemos concentrar-nos em dois aspetos: no próprio processo de criação artística e na relação que esse processo estabelece com criações artísticas precedentes, de modo a poder ser considerado um momento único de uma mesma longa história, a História da Arte. Dito de outro modo, para utilizarmos um termo filosófico de que ainda te recordarás, devemos concentrar-nos no carácter ontológico da obra de arte, na sua natureza íntima, independentemente de ser, ou não, reconhecida publicamente enquanto tal. 

Em termos de condições necessárias e suficientes, isto é, daquilo que não pode deixar de ser observado para que possamos afirmar estar perante uma obra de arte, Levinson propõe que consideremos duas:

1. O direito de propriedade. Segundo esta condição, os artistas não deverão sentir-se autorizados a transformar em obra de arte um objeto que não lhes pertence, a não ser que tenham obtido a devida autorização dos respetivos proprietários. Ficando resolvido deste modo um dos maiores problemas resultantes da Teoria Institucional, segundo a qual qualquer objeto poderia ser convertido em obra de arte por mero batismo.
2. A intenção do artista. Segundo esta condição, a obra de arte não poderá nunca ser fruto do acaso nem de qualquer capricho. Tem que expressar uma intenção, nomeadamente a de estabelecer uma relação com a arte do passado. Isto quer dizer que a obra de arte, por muito original e disruptiva, será sempre considerada tendo em conta a tradição em que se inscreve ou de que se afasta.

Em termos gerais, Levinson formula a definição histórica de arte do seguinte modo:
X é uma obra de arte se, e somente se, X é um objeto que uma pessoa, proprietária desse objeto ou devidamente autorizada para o usar, pretende perspetivar de forma não passageira como obra de arte. Isto é, do mesmo modo que obras de arte anteriores foram perspetivadas.

Embora relativamente consensual, sobretudo porque denuncia o ridículo em que algumas manifestações artísticas contemporâneas acabam por cair, a teoria histórica de Levinson também foi alvo de objeções. Deixo-te algumas de seguida.

1. O direito de propriedade não é uma condição necessária para haver arte. Se assim fosse, teríamos que deixar de considerar obras tão importantes como as de Leonardo Da Vinci ou Boticelli, na pintura, uma vez que foram produzidas com materiais roubados.
2. A condição da intencionalidade também não é uma condição necessária para haver arte. Kafka, por exemplo, um escritor Checo autor de obras literárias admiráveis - O Processo, O Castelo, A Metamorfose... -, deixou claro que alguns dos seus manuscritos deveriam ser destruídos após a sua morte. Contrariando, portanto, a ideia de Levinson segundo a qual o artista terá sempre a intenção de perdurar na história. A verdade é que as obras foram publicadas, contra a vontade expressa do seu autor, e continuam a ser lidas por todo o mundo.
3. Ficamos sem saber que dizer em relação às obras de arte primordiais e de arte primitiva que se lhes seguiram: se para ser arte é necessário que o objeto em questão se relacione com a sua história, as obras primordiais não poderão ser consideradas arte porque antes delas não há arte. Por outro lado, se não considerarmos arte as obras primordiais, as obras de arte primitiva, as que se seguem às primordiais, também não têm referência em relação à qual se posicionam. Logo, ficamos igualmente sem saber como poderão ser consideradas manifestações artísticas.

. Como é possível? Para ouvir, ver e pensar...

Joshua Bell, um dos pianistas mais importantes da atualidade,que  dias antes tinha estado no Symphony Hall de Boston num concerto cujos bilhetes ascenderam aos 100 dólares, esteve durante 45 minutos à saída do metro a tocar num "stradivarius" de 1713, uma raridade no valor de mais de 3 milhões de dólares, e só uma senhora parou para o escutar. Como se explica que mais ninguém o tenha reconhecido?


. Teoria Formalista ou da Forma Significante




A teoria da forma significante defende que as obras de arte genuínas produzem uma emoção estética no espectador, ouvinte ou leitor. Esta emoção seria diferente das emoções da vida quotidiana por não ter nada a ver com interesses práticos, por ser puro prazer, fruição pura. Segundo os defensores desta teoria, a emoção estética é causada por uma característica comum a todas as obras de arte: a forma significante. A forma significante é uma certa relação entre as partes constituintes da obra de arte, independentemente do tema. No caso da pintura, por exemplo, seria a relação mais ou menos harmoniosa entre as cores, as formas, a textura, a perspectiva, entre outros elementos plásticos. Trata-se, portanto, de uma propriedade indefinível que os críticos sensíveis conseguem reconhecer.


Críticas à teoria da forma significante

A teoria da forma significante é criticável, desde logo, porque só os críticos sensíveis é que estariam habilitados para experimentar a emoção estética. Depois, a teoria é circular: diz que a emoção estética é produzida por uma propriedade que produz emoção estética, propriedade acerca da qual nada mais pode dizer-se. Ou seja, o que se pretende explicar é usado na explicação. É a mesma coisa que explicar como funciona um soporífero referindo a sua propriedade de provocar sono. Por último, a teoria é irrefutável: pressupõe que todas as pessoas que apreciam uma obra de arte sentem um único tipo de emoção, algo que dificilmente poderemos demonstrar.

. Ainda sobre a Teoria Institucional: para ler e pensar!


                “Qualquer coisa, não importa de que forma, de que matéria, de que tamanho, de que cor, etc., pode ser uma obra de arte. Esta afirmação não significa que todos os objectos são obras de arte, de maneira nenhuma, ela apenas quer dizer que basta ser posicionado como obra de arte numa esfera artística para que qualquer objecto possa sê-lo de facto. Um objecto não é uma obra de arte, torna-se obra de arte.
                É inútil continuar a imaginar que as obras de arte são em si mesmas obras de arte, que ocupam de modo inalienável o lugar que ocupam. E a razão é a seguinte: não é porque um objecto é uma obra de arte que ele se encontra exposto num museu, pelo contrário, é porque está exposto num museu que um objecto é uma obra de arte. Não se trata de uma questão de gosto, mas de contexto e de graus. Pensemos por instantes nos animais de jardim zoológico. O que é um animal de jardim zoológico? Um animal que possuísse em si mesmo esta ou aquela característica? Não, um animal de jardim zoológico é um animal idêntico aos outros animais, mas que se encontra num jardim zoológico. O que é uma obra de arte? Um objecto que possuísse esta ou aquela característica? Não, uma obra de arte é um objecto idêntico aos outros objectos, mas que se encontra exposto numa galeria ou num museu.
                Se um objecto é uma obra de arte em função do seu posicionamento numa esfera artística, o facto de ser uma obra de arte não pode ser uma questão de tudo ou nada, mas uma questão de graus. Alguns objectos são mais obras de arte do que outros e o mesmo objecto pode ser mais ou menos obra de arte. Em qualquer dos casos, tudo depende do seu grau de exposição. Um quadro exposto no teu salão é menos obra de arte do que um quadro exposto numa galeria de arte e um quadro exposto numa galeria de arte é menos obra de arte que um quadro exposto num museu de belas-artes. Em suma, acontece com as obras de arte como com o bronzeado. Da mesma maneira que um corpo pode estar mais ou menos exposto ao sol, assim um objecto pode estar mais ou menos exposto à luz do museu.”
(Stéphane Ferret, Aprender com as coisas, pp. 52-53)



. Teoria Institucional


A teoria institucional é uma tentativa recente de explicar como coisas tão diferentes como Macbeth de Shakespeare, a Quinta Sinfonia de Beethoven, as fotografias de William Klein, as instalações de Joana Vasconcelos, etc., podem ser consideradas obras de arte. A teoria afirma existirem duas características comuns a todas elas. Em primeiro lugar, todas são artefactos, isto é, todas foram parcialmente manipuladas por seres humanos - a mera transposição de um pedaço de madeira ou de uma pedra, como acontece no caso de Alberto Carneiro, do seu meio natural para uma galeria ou museu é considerado manipulação -. Em segundo lugar, e isto é o mais importante, todas essas coisas foram baptizadas de obra de arte. Ou seja, existe o chamado mundo da arte, uma elite constituído por artistas, galeristas, críticos de arte, entre outros, que tem o poder de atribuir o estatuto de obra de arte àquilo que muito bem entendem. Tal como aconteceu no princípio do século XX com Marcel Duchamp, que está na base desta teoria e que resolveu baptizar um urinol de A Fonte para o exibir numa exposição de jovens artistas.



Críticas à teoria institucional

Em primeiro lugar, a teoria institucional não distingue boa de má arte: se eu fosse um membro do mundo da arte, nada me impediria de exibir o meu sapato numa galeria e torná-lo uma obra de arte. Ou seja, o termo arte é usado num sentido meramente classificativo – isto é arte – e não valorativo – isto é arte porque é belo ou porque causa prazer -. Em segundo lugar, a teoria institucional é circular: a arte é o que um certo grupo de privilegiados decidir chamar arte, ou seja, parece um jogo de palavras – um jogo politicamente perigoso, uma vez que só alguns têm esse dom, como Midas que tranformava em ouro aquilo em que tocava -. Por último, e esta é a objecção mais forte à teoria institucional, ninguém sabe quais os critérios usados pelo mundo da arte. Que razões levam os membros do mundo da arte a baptizar uns objectos e não outros? Sem uma lógica por detrás do que fazem é difícil perceber o interesse das obras de arte. Por outro lado, se há uma lógica, isto é, se há razões para classificar alguns objectos de obra de arte, então a teoria institucional seria desnecessária.

. Teoria da Parecença familiar



O facto de terem surgido novas formas de arte, tais como o cinema e a fotografia, e de galerias de arte terem exibido coisas como um monte de tijolos ou uma pilha de caixas de cartão, tornou a questão particularmente difícil. Chegámos a uma situação em que tudo e mais alguma coisa pode ser arte. Há uma imensa variedade de obras de arte – pinturas, esculturas, peças de teatro, filmes, romances, peças musicais, bailados –e todas elas parecem ter muito pouco em comum. Isto levou alguns filósofos a defender que não é possível definir a arte, uma vez que não é possível encontrar um denominador comum perante tamanha diversidade de obras de arte e de géneros artísticos. Para sustentar esta opinião, estes filósofos basearam-se numa noção usada pelo filósofo Ludwig Wittgenstein, a saber, a noção de parecença familiar. Ou seja, o Marcelo pode parecer-se ligeiramente com o seu pai e o seu pai com a irmã dele. Contudo, pode acontecer que o Marcelo não se pareça com a sua tia. Com as obras de arte passar-se-ia o mesmo: embora pertencentes à mesma família, podem não existir características observáveis partilhadas por todas. Numa palavra, se isto for verdade, é um erro procurar uma definição geral de arte. O melhor que podemos desejar é uma definição de uma certa forma de arte, como o romance, a pintura abstracta, o filme de ficção ou a sinfonia.


Críticas à teoria da parecença familiar

Independentemente de os elementos de uma mesma família exibirem, ou não, características comuns observáveis, há algo que os une inevitavelmente: o facto de estarem geneticamente relacionados. Tal como nos jogos, não há nada de visivelmente comum ao jogo da macaca e a um jogo de futebol. No entanto, trata-se de um jogo em ambos os casos, isto é, em qualquer dos casos estamos perante um evento cujo interesse não é prático, em que espectadores e jogadores escapam ao ritmo do mundo da produção. Com a arte poderá acontecer o mesmo. O facto de não existir uma característica comum observável não significa que não existam propriedades comuns não observáveis. Ou seja, mesmo que o denominador comum a todas as formas de arte se revele pouco importante, é possível encontrar um. Numa palavra, vale a pena ensaiar uma definição de obra de arte. Vejamos, então, algumas tentativas nesse sentido.



. Isto é arte?




Antes de responder à pergunta que te deixo, teremos de perguntar "o que é a arte?" e o que significa fazer essa pergunta. 

Perguntar "o que é?" significa procurar uma definição. Definir, por sua vez, significa isolar as propriedades necessárias e suficientes daquilo que tentamos definir. As propriedades necessárias e suficientes são as características comuns a todos os exemplos daquilo que está em questão. Por exemplo: se quisermos definir um quadrado, teremos de ignorar as características específicas de cada quadrado que vemos – a cor, o material de que é feito, o tamanho, etc. -, para nos concentrarmos nas propriedades que não variam e são comuns a todos os casos: ser uma figura geométrica com 4 lados iguais cujas diagonais se cruzam rigorosamente ao centro. Será isso possível em relação à arte? Que propriedades comuns existirão entre o objeto em cima, a Fonte de Marcel Duchamp, e a Mona Lisa de Leonardo da Vinci? E entre o teatro e a pintura ou a escultura? Que relação existe entre esses géneros artísticos e todos os outros, como a fotografia e o cinema, que foram surgindo ao longo do século xx? E dentro do mesmo género, a música por exemplo, como aproximar uma peça barroca de Bach ou de Vivaldi dos 4´33´´ para piano de John Cage? Ou da literatura, que relação existe entre a literatura de ficção e o romance realista? Pois é... como vês a resposta não é evidente. Talvez porque não estamos a falar de geometria, não te parece? Ainda assim, podemos isolar algumas tentativas, umas mais consistente do que outras, deixo-tas de seguida!